Catadora de futuro: a história de Tugira

Em Uruguaiana (RS), o horizonte é reto. É até difícil saber se estamos olhando para o futuro ou para o passado. Foi nessa terra de lonjuras que Maria Tugira Cardoso nasceu e constituiu família.
Perdeu a mãe com seis anos. Foi criada trabalhando nas estâncias. Mais tarde, foi trabalhar em casa de família, como babá. Estudou como foi possível.
— Fui criada pelo mundo.
Mas, no mundo, desde sempre, sofreu o racismo e presenciou a desigualdade. O trabalho de doméstica não era suficiente para sustentar as crianças. Criou sete. Então, com uma carroça e um cavalo, começou a catar materiais recicláveis: vidro, ferro e osso.
Tugira catou osso na beira da estrada. Por anos.
— A gente saía com a carroça pra juntar o osso no campo. E começamos a ir pro lixão pra ver se tinha lá. Osso ou ferro.
Os mercados começaram a levar as sobras para o lugar e o lixão se tornou uma fonte de alimento, como se fosse uma coisa natural. Mas quem tem fome tem pressa.
— Quem sobrevive ao lixão, sobrevive a qualquer coisa.
No lixão, presenciou a injustiça e se deparou com a morte, com o desespero. Às vezes, encontrava livros. Levava para casa: Machado de Assis, Jorge Amado, a Constituição.
Queria batalhar por seus direitos e sonhava com uma vida mais digna para ela e para a sua família. Foram anos de luta para conseguir sair de lá. Trabalhou catando materiais recicláveis no lixão durante mais de 30 anos.
Hoje, são mais de duas décadas como participante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Em 2009, com a sua liderança, catadoras e catadores de Uruguaiana conseguiram fundar a Associação de Catadores de Lixo Amigos da Natureza (ACLAN). Só em 2014 Tugira conseguiu, finalmente, sair do lixão: quando foi construída a central de triagem da ACLAN.
— Conseguimos melhorar muito as nossas condições de trabalho e saímos da invisibilidade. As pessoas começaram a reconhecer a importância do serviço que prestamos para a cidade, para as pessoas e para o meio ambiente.
Em 2015, Tugira passou a participar do projeto Mulher Catadora é Mulher que Luta, realizado pela FLD. Também atuou no projeto Catadoras e Catadores em Rede e é uma das lideranças do MNCR.

— Com a ajuda da FLD, conseguimos transformar a nossa realidade, conquistamos um espaço mais digno, com as pessoas tendo mais desempenho, jovens estudando, e as mulheres com mais felicidade e vontade de viver. Nós precisamos da ajuda de outras pessoas, que se somem, que façam nossos projetos de vida mais fortes.
Em 2018, Tugira recebeu o Kikito de melhor atriz no Festival de Cinema de Gramado, pelo curta-metragem Catadora de Gente, dirigido por Mirela Kruel.
— Nunca esperei ganhar o prêmio — conta. — Não atuei no filme, não houve nenhuma representação. Não sou atriz. Falei da minha vida, da vida de catadoras e catadores, do cotidiano duro e embrutecedor de viver sobre um lixão, de tirar a subsistência dali, dos restos da sociedade, mas também sobre como buscar alternativas para sair.
Tugira catava osso na beira da estrada, nos vastos campos planos de Uruguaiana. Catava restos, catava o passado.