O que somos capazes de fazer: a história de dona Marta

Do alto do Cerrito, o horizonte é longínquo e ondulado. É um dos pontos mais altos das coxilhas do terceiro distrito de Jaguarão (RS), na fronteira com o Uruguai. Na casa, as paredes amarelas nos dão boas-vindas. Seu Jadir Madeira Faria nos recebe enquanto calça botas. Vai percorrer os campos para verificar o gado.
— Entrem — ouvimos uma voz faceira vinda do quarto. — Fiquem à vontade!
Aos fundos, uma chaleira treme na chapa do fogão à lenha. Sobre a mesa, o café goteja na garrafa térmica, aromatizando a sala toda.
— Estava me arrumando, porque tenho que ir até Jaguarão mais tarde — dona Marta chega de blusa florida e calça jeans, abrindo o largo sorriso de sempre. Precisa ir à cidade para encaminhar documentos da do Kilombo Madeira do qual é presidenta.
— Sentem, sentem! — puxa algumas cadeiras, enquanto nos serve café e pão sem fermento, quentinho, recém preparado.
Marta Faria Madeira mora na comunidade desde que nasceu: ela e seis irmãs e irmãos. Hoje, a comunidade Kilombola Madeira abriga oito famílias, em meio ao campo aberto, sem muitas árvores ou grandes áreas de cultivo. A principal fonte de renda por ali é o trabalho nas estâncias vizinhas.
A infância foi difícil. Muitas vezes, não tinham nem o que comer. O pai era alambrador (profissional que constrói cercas de arame ou alambre) e passava boa parte do tempo fora de casa. Enquanto isso, a mãe precisava levantar de madrugada para dar um jeito de alimentar as crianças.
— Ela levantava de madrugada para buscar laranjas, para que a gente tivesse alguma coisa para comer.
Foram anos de dificuldades. Aos 17, casou. Teve duas filhas e um filho — que também passam dificuldades em outros municípios da região, principalmente por desemprego após a pandemia.
Depois de casar, passou a cuidar da casa e da família. No início, não cultivava praticamente nada, nenhum alimento ou árvore frutífera. As crianças cresceram e Marta passou a trabalhar como faxineira nas estâncias próximas. Ainda hoje segue nessa lida.
Mesmo nos assuntos difíceis, dona Marta não abandona o sorriso. Na parede da casa, ao lado de retratos da família, uma fotografia emoldurada mostra um dos momentos mais significativos na vida dela. Foi quando o Programa CAPA de Agroecologia, da FLD, incluiu a comunidade no processo de autorreconhecimento como comunidade kilombola.
Na foto, dona Marta está recebendo a Certidão de Autodefinição da Fundação Cultural Palmares.
— Antes do CAPA, a gente vivia abandonado. A prefeitura não olhava por nós e os outros órgãos muito menos.

Três anos mais tarde, em 2012, a organização iniciou um trabalho direcionado à Comunidade Madeira. A partir daí, foram muitas conquistas: uma caixa d’água grande para a comunidade, a implantação do pomar de frutíferas, cursos de artesanato, viagens, intercâmbio com outras comunidades e, principalmente, a instalação da horta comunitária.
— Depois de conseguirmos a certidão de Comunidade Kilombola, nós acessamos políticas públicas específicas, como o transporte escolar para os nossos jovens que puderam fazer o ensino médio aqui no município vizinho. Sem isso, a gente não teria condições de deixar os filhos estudarem — ela conta.
O que mais a entusiasma, no entanto, é o conhecimento técnico. Hoje, ela consegue cultivar uma horta diversificada, garantindo a soberania alimentar da família, sem contar que se trata de uma fonte de renda cada vez mais importante.
Já conseguiu, inclusive, deixar de trabalhar em algumas casas por conta da renda da horta.
— Para o verão que vem, se conseguirmos o trator para preparar uma área maior, vou plantar ainda mais coisas — planeja.
E já não são poucas as variedades de alimentos: por ali, dona Marta cultiva batata doce, abóbora, milho, tempero verde, pimentão, melão, couve, beterraba, mostarda, vagem, alface, fava e ervilha. Quando um produto é colhido, outro já é plantado no lugar. Tudo é comercializado de maneira direta.
— É tudo por WhatsApp.
Toda semana, avisa num grupo no aplicativo quais são os produtos disponíveis. Por ali, os clientes fazem seu pedido. Uma amiga busca os alimentos na comunidade e entrega em Jaguarão.
A FLD, por meio do Programa CAPA de Agroecologia, foi fundamental para a comunidade, ela reitera. Hoje, as famílias têm mais segurança alimentar, sem contar no auxílio para o acesso a direitos e políticas públicas.
— Já sou uma mulher muito diferente daquela de cinco anos atrás, que só trabalhava em casa, cuidando da família, lavando roupa, cozinhando e faxinando.
Para ela, a FLD ajudou para que as pessoas da comunidade recuperassem a autoestima e ganhassem mais autonomia, além de dar oportunidade de geração de renda para as famílias.
— Quero que as pessoas vejam o que somos capazes de fazer produzindo comida — ela diz, nos entregando mais um pedaço de pão.