Produzindo esperança: a história de Tatiane, Vanderlei e Melissa

Tatiane se agacha para beijar a bochecha de Melissa, agarrada na bermuda do pai. Do lado de fora, a horta está repleta de verduras e legumes. Lembra da própria infância: o prato era preto e branco. Tatiane só conhecia feijão e arroz.
Ela levanta, despede-se do marido e pega a mala. Está saindo para mais uma semana de estudos no curso Técnico Integrado em Alimentos do Instituto Federal Sul-rio-grandense, Campus Visconde da Graça (IFSul – CAVG), em Pelotas (RS).
Melissa acompanha a mãe até a porta. Só voltará a vê-la no próximo fim de semana. O regime de internato é uma das principais dificuldades do curso: além de ficar longe da família, Tatiane não pode trabalhar para ajudar no sustento de casa durante os dias de estudo.
Tatiane Lacerda Siqueira vive com o marido Vanderlei Carpe da Silva e a pequena Melissa no Kilombo Algodão, na Colônia Triunfo, em Pelotas. São jovens. Sobrevivem modestamente da agricultura na comunidade kilombola. Com a ausência de Tatiane durante a semana, a principal fonte de renda da família vem dos programas governamentais e dos trabalhos de Vanderlei em propriedades rurais vizinhas, colhendo tabaco e cortando madeira para a cura do fumo nos meses de safra.
A renda é sempre incerta. Pelas dificuldades (e pelo ciúme do marido), Tatiane já cogitou largar o curso. Apesar disso, mantém-se empenhada. Não é uma oportunidade que possa abdicar. Conquistou sua vaga através das cotas para comunidades Kilombolas. Por causa disso, tem condições de se manter na instituição. Recebe bolsa moradia, alimentação e transporte interurbano.
Os estudos são a chance de uma vida melhor para a família. Também trabalha como agricultora no pequeno espaço do Kilombo Algodão nos finais de semana. Além disso, comercializa os alimentos orgânicos que produz na Feira Kilombola Akotirene — a única de produtos agroecológicos do estado realizada por famílias negras kilombolas. A feira foi estruturada e recebe o acompanhamento do Programa CAPA de Agroecologia, da FLD.
— É muito legal estar na feira, conversar com os consumidores, atender e entregar os produtos para as pessoas e dizer que esse alimento lindo é da minha horta, fui eu quem plantei — Tatiane conta.
Apesar disso, a renda dos produtos comercializados fica com a mãe e o pai dela. Tatiane tem outros 5 irmãos, todos homens.
— Quase tudo do que está plantado são meus pais que cuidam. Eu só consigo ajudar nos finais de semana. Então o dinheiro dos produtos da horta fica com eles, porque estamos ajudando muito pouco já que estou fora toda a semana.
Apesar das dificuldades, Tatiane é otimista. Já viu tanta coisa melhorar desde a infância.
— Desde os meus 10 anos, temos o acompanhamento do CAPA aqui com muitos projetos para garantir a segurança alimentar, plantio de árvores de frutas, resgate da cultura, trabalho com capoeira, cursos de corte e costura, emissão de documentos, recuperação de fontes de água, assistência técnica para a produção na horta. Foi a partir desse acompanhamento e desse conhecimento que a gente teve coragem de plantar. Hoje temos praticamente tudo aqui na comunidade, precisamos comprar poucas coisas de fora.
Atualmente, a comunidade produz feijão, batata doce, batata inglesa, três variedades de alface, salsa, brócolis, repolho, couve, beterraba, chuchu, cebola, laranja, bergamota, morango, goiaba, banana, pimenta, abóbora, tomate, temperos diversos. A lista não para por aí. Os produtos possibilitam uma alimentação saudável, com qualidade e quantidade para as famílias do Kilombo Algodão. O excedente é comercializado na Feira Akotirene, que incrementa a renda das famílias.

Antes, o prato era preto e branco. Tatiane não conhecia alface nem couve. Hoje, basta ir à horta.
— Sem dúvida, se a gente não tivesse esse acompanhamento do CAPA, a nossa vida seria muito diferente.
Antes de pegar a estrada para mais uma semana de estudos, Tatiane olha mais uma vez para a filha e o marido. A rotina é dura, a distância dói. Quando olha para trás, entretanto, Tatiane enxerga a esperança.