O protagonismo kilombola: a história de Roberto

A geada branqueia as baixadas de Canguçu (RS). Roberto de Matos aguarda em sua casa, na Comunidade Kilombola de Cerro das Velhas, numa propriedade de pouco mais de três hectares na encosta de um morro pedregoso na localidade de Armada.
Vive com a esposa Libânia e o filho do meio, João Alberto. Seu Roberto é filho único por parte de mãe: cozinheira numa estância na região, engravidou do filho do patrão (que teve, pelo menos, mais dezesseis filhas e filhos com outras mulheres).
— Meu pai era branco e minha mãe negra, por isso eu saí mesclado.
Aos cinco anos, sua mãe não tinha condições de criá-lo e o deixou de vez na estância do pai. A avó paterna cuidou do neto.
— Nunca conheci outra pessoa com o coração tão bom como o dela.
Roberto foi crescendo na lida campeira. Conheceu Libânia e, aos 21 anos de idade, casou-se com ela. A partir de então, quis ter seu próprio canto. Morou de empréstimo, trabalhou em propriedades da região, mas as condições eram precárias. Por vezes, faltou comida.
Só aos 24 anos de idade, Roberto e Libânia conseguiram se estabelecer, com as três crianças, no Cerro das Velhas. O kilombo recebeu esse nome por ter pertencido a duas irmãs solteiras que refugiavam pessoas negras escravizadas.
Como as irmãs não tinham quem herdasse, suas terras foram distribuídas e ocupadas por diversas famílias.
— Eu ganhei meio hectare e depois juntei com a terra que outras pessoas da família tinham ganhado.
Hoje, o kilombo abriga 60 famílias, numa área de aproximadamente 180 hectares.
— As antigas donas possuíam mais de dois mil hectares. Só que, com o passar dos anos, os lindeiros foram se apossando cada vez de mais terra e tirando de nós.
Mesmo com o próprio terreno, a vida continuava difícil. Precisavam caminhar quilômetros, diariamente, até uma estância vizinha, onde conseguiam leite para as crianças. A situação só começou a mudar em 1999, quando o Programa CAPA de Agroecologia, da FLD, reuniu mais de cem pessoas kilombolas em um comércio local. A partir de então, a organização se aproximou da comunidade, trabalho que permanece até hoje. Seu Roberto já nem lembra quantas ações e projetos foram desenvolvidos.
— Começamos a entender que também merecemos respeito, que temos valor, que devemos ser atendidos da mesma maneira e temos os nossos direitos. Eu mesmo tinha muita vergonha de falar e de me expressar, só consegui mudar isso depois do trabalho com o CAPA.
Seu Roberto é o atual presidente da comunidade. Hoje, chega nas repartições públicas do município e as pessoas sabem quem ele é, quem representa, o que busca. É bem atendido. Segundo ele, sobretudo, as famílias ganharam visibilidade e protagonismo.

Com o apoio da FLD, por meio do Programa CAPA de Agroecologia, a comunidade já foi beneficiada com projetos de documentação das trabalhadoras rurais, com acesso a programas de moradia, como a Arca das Letras (que destinou pequenas bibliotecas a comunidades rurais), com projetos de formação em corte e costura, além do reconhecimento da comunidade pela Fundação Palmares.
Hoje, o kilombo gera renda através de artesanato, cultura, culinária, capoeira e produção de alimentos, a partir de quintais orgânicos, distribuição de sementes e mudas e acompanhamento técnico de promoção da agroecologia. Na propriedade da família de Seu Roberto, há a criação de aves, suínos, vacas de leite, árvores frutíferas, cultivo de verduras e legumes.
— Não é nada parecido com antes.
Em 2018, Seu Roberto chegou a receber o Certificado em Homenagem a Personalidades Negras, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, pelos serviços prestados à comunidade negra.
Após décadas de invisibilidade, o Kilombo Cerro das Velhas hoje é exemplo de força. Com o trabalho contínuo e o apoio da FLD, a comunidade consegue manter a soberania alimentar das famílias.
— Foi quem nos descobriu, resgatou, nos apoiou no passado e está sempre conosco.