Uma das tribos mais ameaçadas do mundo, os Awá Guajá não conheciam os brancos até recentemente. Mas na reserva do Gurupi, no Maranhão, o impacto do pólo minerador-exportador põe em risco o modo de vida dos índios
Uma mulher dá de mamar a um macaco guariba. Outros dois meninos brincam com um periquito e um terceiro, deitado em uma rede, com um quati. A imagem de galhos e folhas de árvores é coberta por uma fala de som inusitado, a língua guajá.
As cenas são de um vídeo produzido pela Survival International como parte de uma campanha para salvar a “tribo mais ameaçada do mundo”, segundo a organização, os Awá-Guajá. Atualmente, os índios dessa etnia ocupam três áreas no Maranhão: a Terra Indígena Alto Turiaçu, a Terra Indígena Awá e a Terra Indígena Carú.
“Na verdade, [a área das terras indígenas] só tem esse formato devido ao empreendimento Carajás, que dividiu uma grande reserva florestal, a do Gurupi, para se tornar esse mosaico que é hoje”, conta Rosana Diniz, coordenadora regional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) no Maranhão.
Ela se refere à Estrada de Ferro Carajás (EFC), do Programa Grande Carajás, o pólo de produção e exportação de minérios da então Vale do Rio Doce – hoje Vale S/A – implantado nos anos 80. O trem que parte da Floresta Nacional de Carajás, no Pará, onde ficam as minas da Vale, segue pelo Maranhão até o porto de exportação próximo a São Luís, é o maior do mundo. São quatro locomotivas e 330 vagões que atravessam com estrondo reservas florestais, terras indígenas, comunidades quilombolas e de pequenos agricultores.
Ainda nos anos 80, a Vale firmou um convênio com a Fundação Nacional do Índio (Funai) para demarcar o território dos Awá-Guajá no Maranhão, apoiando financeiramente o processo. Assim surgiu a Terra Indígena Awá, localizada a 35 km da Estrada de Ferro Carajás. Também estão na área de influência da ferrovia as terras indígenas Carú e Mãe Maria afetadas, no momento, pela expansão da Estrada de Ferro Carajás como parte de um projeto da Vale de duplicar a extração de minério no Pará.
“O BARULHO DO TERROR”
O contato com os Awá-Guajá no Maranhão é recente, poucos falam algumas palavras de português. Há mesmo notícias de Awá-Guajás não contatados. Como vivem da caça e da coleta, circulam pelo território e sentem dramaticamente qualquer impacto sobre ele.
“Os Awá tem toda uma teoria sobre o barulho, sobre o som, que inclusive forma o conhecimento deles sobre a caça. O silêncio na mata é muito valorizado. Eles conseguem ouvir a chuva quando está chegando, minutos antes de ela cair. Então eles têm toda uma teoria nativa sobre o barulho e o barulho do trem é um barulho do terror”, explica Uirá Garcia, antropólogo que trabalha com os Awá-Guajá.
As aldeias mais próximas da ferrovia estão na Terra Indígena Carú. São as aldeias Awá e Tiracambú, distantes cerca de 1,1 km e 1,7 km da ferrovia, respectivamente. Além do ruído que espanta a caça e causa medo às crianças, os Awá-Guajá convivem com desmatamento e a exploração ilegal de madeira no território invadido pela chegada de migrantes atraídos pelos grandes empreendimentos econômicos na região.
“Considerando que é um povo caçador e coletor, que vive exclusivamente da floresta e consequentemente não tem políticas voltadas para esse modo de vida – nem por parte da Funai, nem na assistência da saúde -, esses elementos nos levam a concluir que esse é, realmente, o povo mais ameaçado no Brasil”, acredita Rosana Diniz.
O FUTURO DOS AWÁ-GUAJÁ
A situação de outros índios afetados pelo pólo exportador de Carajás – esses no Pará – antecipa um futuro ameaçador para os Awá-Guajá.
No sudeste do Pará, onde ficam as minas da Vale, o imenso trem corta as terras da tribo indígena Mãe Maria. Ali, cerca de 700 índios Gavião se dividem em cinco aldeias nos 62 mil hectares que compõem a única área verde do município de Bom Jesus do Tocantins.
Os Gavião enfrentam o mesmo problema de caça que os Awá-Guajá, além de atropelamentos nos trilhos do trem que não pode parar – um maquinista controla o trem de 3,5 km de extensão. O território deles está na área de influência dos megaprojetos de desenvolvimento desde a década de 1970 – dos alagamentos causados pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí – e as linhas de energia que cortam o território – à construção da BR-222 (que liga Marabá a Fortaleza).
Os que ficam mais próximos às minas, porém, são os cerca de mil índios Xikrin Kayapó, da Tribo Indígena Cateté, ao sudoeste de Marabá. A área ocupa perto de 440 mil hectares do município de Parauapebas, sede da Floresta Nacional de Carajás – de onde é extraído o minério de ferro da Vale.
As indenizações e programas estipulados pelo IBAMA que a Vale paga aos Xikrin e aos Gavião, por enquanto, são as únicas tentativas de compensar e mitigar os danos causados ao ambiente e modo de vida dos índios.
O que leva a conflitos e renegociações constantes. “A Vale acha que são coisas definitivas e não são. Da perspectiva dos índios, a negociação está sempre aberta. É sempre possível voltar a negociar porque é sempre insatisfatório. Tem essa figura no direito que chama hipossuficiência jurídica. A desigualdade é tamanha na negociação que, para os índios, a possibilidade de renegociação está mesmo sempre aberta”, diz Iara Ferraz, antropóloga que acompanha os índios Gavião desde a década de 70.
Em 2006, quando índios Xikrin pararam a produção da Vale em Carajás, a empresa declarou não ter obrigação legal de indenizá-los pelos impactos socioambientais causados por seus empreendimentos na região. “É responsabilidade do Estado a garantia de recursos financeiros para atender às necessidades destas comunidades, atuando através da Funai e de outras entidades governamentais”, declarou a companhia.
“É chegada a hora de o Estado definir e implementar políticas de apoio ao desenvolvimento sustentável das comunidades indígenas em todo o território brasileiro. As empresas privadas não podem mais conviver com ilegalidades promovidas por índios, que vêm lançando mão de ações que podem ser caracterizadas como crimes de cárcere privado, roubo, extorsão, dano, invasão de estabelecimento industrial, formação de quadrilha, perigo de desastre ferroviário e desobediência”, afirmava a empresa.
Para Marcos Reis, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Norte 2 – que abrange o Pará e o Amapá –, “o argumento que a Vale usa de que faz caridade, que dá isso de boa vontade, é falacioso, porque ela está condicionada a fazer isso”, diz, se referindo às condições impostas à companhia – então estatal – pelo Senado Federal depois da redemocratização do país.
A resolução nº 331 de 1986 do Senado concedeu à Vale o direito de uso de terras da União por tempo indeterminado mas estipulou entre os deveres da empresa o “amparo das populações indígenas existentes às proximidades da área concedida e na forma do que dispuser convênio com a Fundação Nacional do Índio – FUNAI ou quem suas vezes fizer”.
ÁGUA POLUÍDA
Kangó, um índio de 42 anos, é representante da aldeia Djudjekô, dos índios Xikrin. Ele conta que decidiu começar a estudar para ajudar os índios, índias, curumins e anciãos de sua comunidade. “Tem gente ainda que não sabe falar português, os velhos e as crianças da nossa aldeia são assim. Nem a índia nem o menino sabem português. Eu preciso estudar para poder ajudar eles”, conta. Sua aldeia está mais próxima da área de mineração de níquel da Vale, chamada Onça-Puma, nas terras da Tribo Indígena Cateté.
Ele explica que o aumento da população é um dos fatores que justificam a renegociação das indenizações pagas pela Vale. “Tem muito minério rodeando a aldeia e a aldeia ficou no meio. Esse recurso que a Vale repassa para a comunidade indígena não dá para todas pessoas, porque todo ano a população cresce nas três aldeias Xikrin”, fala.
Juliano Almeida, indigenista da Funai em Marabá, diz que os recursos são destinados a atividades de interesse da comunidade. “Tem um conselho [na comunidade] que define a forma como esse dinheiro vai ser aplicado”.
As extração de níquel polui bem mais do que mineração de ferro. Na aldeia Djudjekô, próxima às minas de Onça-Puma, os índios temem a contaminação do rio da comunidade, o Cateté. “Nós estamos preocupados com pó que cai na água. As crianças se banham e bebem da água do rio. E com a nossa alimentação, com o peixe. O pó também cai na castanheira, onde nós buscamos a castanha pra se alimentar. Algumas já morreram por causa de pó”, diz Kangó.
O índio conta que as crianças apresentam sintomas de intoxicação como diarreia, coceira e vermelhidão nos olhos. Seu neto de três anos, Pepnhuika, agora está fazendo um tratamento para os olhos. Os gastos com saúde e projetos para sobrevivência das aldeias – como os de cultivo e extração de castanha – são realizados com as indenizações que os índios recebem da Vale. E eles sabem que com esses mesmos recursos têm de se preparar para o futuro, quando as minas se exaurirem.
“Nós temos uma preocupação, uma tristeza, um sentimento. Mas também temos um projeto de plantação de cacau, estamos começando a produzir, a fazenda também já está começando a produzir”, fala Kangó. “Nós temos que trabalhar, para sobreviver os nossos netos, os nossos filhos, para não esquecer o nosso futuro. E assim, se a Vale deixar nós, nós temos o nosso trabalho”.
LUTA JUDICIAL
Em julho do ano passado, o juiz federal Ricardo Macieira da 8ª Vara de São Luís, no Maranhão, determinou a suspensão da expansão da Estrada de Ferro Carajás até que fosse realizado o Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima). A duplicação da ferrovia e expansão dos pátios havia sido considerada “uma reforma” pelo IBAMA – apesar de cortar reservas naturais e comunidades protegidas ao longo dos quase 700 km da obra – e a Vale foi dispensada do EIA-Rima, apresentando apenas uma modalidade mais simples de pesquisas, o Estudo Ambiental e Plano Básico Ambiental (EA/PBA).
A decisão do juiz federal atendia às reivindicações da ação civil pública movida por órgãos de direitos humanos, como a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), o Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), contra o IBAMA – que dispensou o EIA-Rima – e a Vale – que não realizou a consulta prévia a comunidades indígenas e quilombolas – como determina a Convenção 169 da OIT. A ação civil também citava a falta de publicidade na convocação das audiências públicas por parte do IBAMA e da Vale.
Em setembro de 2012, porém, o desembargador federal Mário César Ribeiro, presidente do TRF da 1ª Região revogou a liminar do juiz federal e liberou a execução das obras nos trechos que não ferem as terras indígenas. A questão jurídica, porém, ainda não foi decidida, como explica Rosana Diniz, do CIMI: “A ação judicial continua correndo. A Vale entrou com um recurso alegando prejuízo e nós também entramos com um recurso, um agravo regimental, que será julgado pelo colegiado da segunda instância do TRF. A gente, então, está aguardando o julgamento dessa ação”.
Além disso, segundo a Coordenação-Geral de Índios Isolados e Recém Contatados da Funai, a Licença de Instalação do IBAMA de novembro de 2012, autorizando a duplicação da ferrovia, incluiu as ressalvas do órgão de proteção aos índios pedindo a interrupção da obra nos trechos que atingem as Terras Indígenas Carú e Mãe Maria até que a Vale entregue os Estudos de Impacto Ambiental do Componente Indígena para a análise e manifestação técnica da Funai.
E COMO FICA A “TRIBO MAIS AMEAÇADA DO MUNDO”?
Em 2007, a Vale renovou o Acordo de Cooperação firmado com a Funai para atender as necessidades e demandas das Terras Indígenas Carú, Awá e Alto Turiaçu. Segundo a assessoria de imprensa da empresa, o acordo – que tem vigência até 2016 – tem o objetivo de atender a especificidade cultural dos índios Awá.
Não será fácil, a julgar pela opinião do antropólogo Uirá Garcia, que explica: há uma série de impactos ambientais e sociais que fazem com que os Awá-Guajá se sintam historicamente prejudicados pelos empreendimentos da Vale, além de um abismo cultural na relação entre companhia e índios.
“O sentimento geral da população Awá-Guajá, que está na Terra Indígena Carú, na aldeia Awá e na aldeia Tiracambú, é que eles não querem essa duplicação [da ferrovia de Carajás]. Os Awá são um povo que conhece muito pouco do nosso universo, do que é o Brasil, do que é o presidente, do que é a Vale. Como você vai negociar com um povo que não sabe o que é dinheiro?”, questiona o antropólogo.
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FONTE: Jessica Mota, da Agência de Jornalismo Investigativo Pública
FOTO: Reprodução de Agência Pública