A matéria publicada no Diário Popular, Pelotas (RS), de autoria de Jarbas Tomaschewski (título original – Cinco anos depois, famílias quilombolas têm acesso a direitos fundamentais -), faz parte da série Sorrisos Negros, e mostra um pouco do trabalho do parceiro estratégico da FLD, o Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA). Acesse aqui o outro capítulo: A vida no Algodão melhorou, mas isolamento ainda incomoda.
Fotos: Jô Folha, do Diário Popular
Das profundas marcas de expressão que Eva Nunes Lacerda carrega em seu rosto de 78 anos, duas são exercitadas por sorrisos desde 2009. Eva tem motivos para mostrar-se feliz. Se há cinco anos habitava com os netos um barraco torto de madeira (na foto da capa, a antiga moradia de dona Eva), com frestas por onde entravam o vento, a chuva e o frio, e sentava à frente do fogão a lenha com os pés diretamente no chão do Quilombo do Algodão, interior de Pelotas (RS), hoje a realidade é outra.
A casa de Eva continua simples e pequena, mas agora é de alvenaria. De paredes externas no tom salmão e varanda azul-claro, abraça com conforto o corpo magro com descendência escrava. Foi a partir do reconhecimento quilombola, do Algodão e de outras 38 comunidades em 16 municípios da Zona Sul gaúcha, identificadas pelo Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa), que 1.419 famílias passaram a ter acesso a benefícios e subiram alguns degraus em qualidade de vida.
Eva sorri enquanto segura seu cigarrinho de palha na mão direita, a cuia do chimarrão na mão esquerda e esquenta o corpo ao sol na casa nova. Foi assim que a reportagem do Diário Popular a encontrou às 10h24min da manhã fria do dia 28 de agosto, quando o jornal retornou ao 4º Distrito para rever personagens visitados em 2009 – conversar com novos também – e contar, em dois capítulos, as melhorias alcançadas após o projeto, desenvolvido para o programa federal Territórios da Cidadania, impactar positivamente uma população à margem das cidades.
A vida está diferente por lá, onde vivem 93 famílias na maior de todas as comunidades resgatadas. E o que mais chama a atenção, justamente, é que as pessoas passaram a sorrir mais. Os desafios também são outros, menos tortuosos ao líder comunitário Lino Dias. Seu telefone celular toca com frequência. Do outro lado da linha, moradores com pedidos ou em busca de informações. Lino atende a todos com paciência, quase sempre já com as respostas.
- Ficou para hoje às 14h30min.
- Deixa o documento aqui que vou à cidade e resolvo.
- Está encaminhado. Chega semana que vem.
Os dias difíceis, porém, não se apagaram da memória do líder negro, trabalhador das lavouras de fumo entre os meses de outubro e fevereiro. Até porque eles ainda existem. O não esquecer é a forma de fortalecer a luta pelo que ainda precisa ser alcançado, afinal, nenhuma vitória até hoje foi fácil. Sobre as mudanças a partir de 2009, tem a resposta pronta: “Conquistamos em cinco anos o que não conquistamos em cem.” Uma remissão à miserabilidade das gerações passadas. Pais e avós que nasceram, cresceram e morreram lutando apenas pela subsistência. Batalhas que as novas gerações, representadas pelos primos Fabrício Lacerda Siqueira e Tatiane Lacerda Siqueira, ambos com 16 anos, já não devem travar. Estudantes do Ensino Médio da Escola Elisabeth Blaas Romano, eles trocaram o futuro quase certo na lavoura pela sala de aula. E sonham.
A conversa com os dois ocorre em bancos improvisados em tocos de eucalipto. Questionados se mostrariam seus cadernos à reportagem, os adolescentes entram nas casas e voltam com o material na mão. Ele com um, ela com vários. Fabrício gosta de Educação Física e Matemática, enquanto Tatiane prefere Português. Se o Campus Pelotas Visconde da Graça (CAVG-IF-Sul) não tivesse entrado em greve e alterado o calendário letivo, o adolescente seria hoje seu aluno. “Quero ser técnico agropecuário. Passei em 11º”, diz com orgulho. Na lista de aprovados no Vestibular de Verão 2014, lá está seu nome, selecionado para o internato, manhã e tarde.
Esse também é o desejo de seu pai, Lino, revelado horas depois nas andanças pelo Centrinho, como a localidade onde todos vivem é conhecida. O líder comunitário não quer perder o filho para a lavoura. Projeta-o grande, alguém preocupado em estudar e entender o campo. Um quilombola com diploma.
Simone comemora e faz planos
Simone Nunes Gouveia, 34, é tímida. Mas assim como a idosa Eva e os outros moradores, sorri quando fala da casa nova construída no Rincão da Cruz, entregue em dezembro do ano passado. Um ano antes, em 26 de setembro, a Caixa Econômica Federal assumiu a responsabilidade de construir 31 unidades habitacionais aos moradores do Quilombo do Algodão. Entre os beneficiados, Simone.
Enquanto lava as verduras para o almoço coletivo das mulheres que participam de uma nova aula de corte e costura, a mãe de Jéssica, 16, e Welington, 13, revela os planos de mobiliar o lar. O utensílio mais desejado ainda depende de dinheiro: um fogão a lenha.
Do chalé de madeira onde morava, distante 15 quilômetros, o que a fez acordar e sair às 6h para chegar ao Centrinho, lembra que chovia dentro. Simone fala pouco, o suficiente, contudo, para revelar dias melhores no lar agora abrigado. “Conservo mais limpo, não entra poeira.”
Como são as casas
Incluído no Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), do programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), o Morando Bem no Quilombo recebeu R$ 806 mil do Orçamento Geral da União (OGU) para a construção das moradias. Cada unidade tem 40,24 metros quadrados de área construída, é composta por dois quartos, sala, banheiro e cozinha. As casas contam com fossa séptica com foco na sustentabilidade, além de projetos adaptados a pessoas com necessidades especiais. Os beneficiários recebem subsídio de R$ 25 mil e pagam, como contrapartida, R$ 1 mil. O valor é parcelado quatro vezes, de R$ 250,00 ao ano.
Capoeira no campinho
No deslocamento até o Quilombo do Algodão, a equipe do Capa e a reportagem do Diário Popular fazem uma parada a metros de distância do cruzamento da avenida Fernando Osório com a BR-116. Em uma parada de ônibus está à espera do carro o agente cultural Daniel Roberto Soares, o Preto. Nas mãos, uma sacola e um berimbau. Ele assume o volante e conduz o veículo pelas estradas do interior de Pelotas, onde gente da cidade não consegue circular sem se perder. Quase uma hora depois, na chegada ao Centrinho, as crianças o cercam. Todas o conhecem e são conhecidas por ele pelo nome. O motivo de não desgrudarem é um só. Querem partir logo para a aula de capoeira.
A atividade ocorre próximo das casas, em um campinho de futebol improvisado cerca de 150 metros de distância, com goleiras frágeis e chão empoeirado. Ali, 12 meninos e meninas escutam com atenção e repetem o canto do mestre, que quebra o silêncio da Serra dos Tapes: “O nego tá danado”. Nem a pequena Lara, em sua cadeira de rodas, é deixada de fora. Ela assiste a tudo entrosada com o grupo, canta e é chamada a cada instante. A aula transcorre das 10h às 11h20min, para respeitar o horário do transporte escolar, e o frio já não incomoda os pés descalços de alguns.
A capoeira no Algodão tem significado. Dentro de um território étnico, a mistura de dança e luta é parte de um processo para assegurar a sobrevivência cultural dos quilombolas.
Quem vive no Quilombo do Algodão
Famílias – 93
Total de pessoas – 480
Menores de 18 anos – 185
Adultos, de 18 a 60 anos – 286
Idosos, acima de 60 – 9
A certificação
Atualmente são 41 comunidades da Zona Sul autodefinidas, com o certificado emitido pela Fundação Cultural Palmares. O documento permite às famílias quilombolas receber a titulação do território, participar do Minha Casa, Minha Vida, do Programa Brasil Quilombola e ser habilitada ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
Como se conquista a certificação
- A comunidade deve ter uma associação legalmente constituída;
- Nos locais onde não existe associação, a comunidade deve convocar uma assembleia para deliberar sobre a autodefinição, aprovada pela maioria de seus membros, acompanhada de lista de presença;
- A documentação deve ser enviada à Fundação Cultural Palmares (FCP), juntamente com fotos, documentos, estudos, reportagens, que atestem a história do grupo e suas manifestações culturais;
- O material precisa apresentar um relato sintético da história;
- Os quilombolas devem solicitar ao presidente da FCP a emissão da certidão de autodefinição.
(Fonte: Fundação Cultural Palmares)