Criminalização dos Movimentos e Lutas Sociais foi tema do primeiro Café com Direitos de 2017 da FLD, promovido no dia 4 de abril, em Porto Alegre (RS). O evento teve a participação de Roberta Sartini Coimbra, da Via Campesina e Direção Estadual do Setor de Gênero do Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores sem Terra (MST), Januária Tinoco Moraes, estudante e integrante do Movimento Ocupação das Escolas, Oro Mendes, da Comissão de Comunicação do Bloco de Luta pelo Transporte Público, Matheus Chaparini, jornalista preso durante a ocupação da Secretaria da Fazenda por estudantes, e Roberto Lorea, juiz representante da Associação Juízas e Juízes para a Democracia do RS.
“Criminalizar atos de protestos, movimentos sociais e suas lideranças não é novidade, nem no Brasil e nem na América Latina”, disse Roberta. “No entanto, é preciso entender que não se criminaliza o movimento em si, mas a sua proposta. O MST nunca colocou nas suas pautas reivindicatórias a posse da terra. Nossa luta é pela reforma agrária e pela função social da terra”.
Para fragilizar a proposta, busca-se fragilizar os coletivos. Não é de agora que o MST é alvo de denúncias, mas Roberta cita o ano de 2008 como um marco no aumento da violência. Nesse ano, oito membros do RS foram presos, com base em três documentos: dois da inteligência da Brigada Militar, elaborados em 2006 e 2007, e outro de 2007, do Ministério Público Federal (MPF).
“Aparentemente, o fato de sermos organizados, de termos escolas, saúde e comida, e que mesmo em condições precárias as pessoas consigam viver mais ou menos bem, nos torna ‘muito perigosos’”, afirmou Roberta. “Não foi um documento jurídico, mas sim, político”. O relatório do MPF, que era para ser sigiloso enquanto não se organizavam medidas de repressão, acabou vindo a público e sofreu fortes críticas no país e no exterior.
A estudante Januária Tinoco Moraes, que integra o Movimento Ocupação das Escolas, falou em seguida. “É importante saber que nossa escola parava naqueles dias por um movimento de luta, ou parava por falta de recursos”. Com seis meses de atraso no repasse de verbas, que já são pequenas, a escola estava com o seu telefone cortado e não tinha praticamente mais nenhum material. Professoras e professores estavam em greve, em função do parcelamento dos salários pelo Governo Sartori.
Em termos de violência, o problema mais grave não era a Brigada Militar. A verdadeira perseguição foi feita pelas pessoas ligadas ao Desocupa. “Ele existe, mas não existe, daí existe. Ninguém se declarava publicamente como participante, não nos tentavam tirar à força das escolas, mas nos ameaçavam de morte. Éramos perseguidos na rua por mães e pais que faziam parte do Desocupa. O que faziam era guerra psicológica, para ver se conseguiam nos matar no cansaço”, disse Januária.
A ação policial que foi especialmente emblemática ocorreu durante a ocupação da Secretaria da Fazenda em 15 de junho de 2016, por um grupo de alunas e alunos dissidente do que havia fechado um acordo de desocupação das escolas com o governo na noite anterior. “O acordo não favorecia os estudantes em nada”, esclareceu Januária. Em pouco tempo, a tropa de choque da Brigada Militar estava posicionada no local. “Impressionante o aparato e a força usada. Os estudantes estavam de braços dados, cantando palavras de ordem, e viaturas e camburões à volta, PMs com escudos, capacetes, tiraram o pessoal com o uso de força e levaram presos.
Nesse episódio estava o jornalista Matheus Chaparini, do jornal Já, que cobria as ocupações em Porto Alegre. “As alunas e alunos ainda estavam no prédio e entrei. Os brigadianos começaram a tirar as pessoas à força, usaram spray de pimenta, estavam por todo o lado”. Das 43 pessoas presas, 33 eram menores de idade. Todas e todos foram algemados e colocados em micro-ônibus e camburões
Matheus e as outras pessoas adultas foram encaminhadas para uma delegacia e depois, ao presídio central. Foram autuados por dano ao patrimônio, resistência, associação criminosa e corrupção de menores. “Acabei servindo como um alerta a outros jornalistas, de que existe ‘uma forma’ de fazer a cobertura, que é detrás dos policiais. Se os jornalistas quiserem furar essa barreira ‘informacional’, terão que fazer por sua conta e risco”.
Outra avaliação de Matheus é que toda a discussão sobre se ele era ou não jornalista – a alegação da BM é que estaria junto com o grupo que ocupava a secretaria e não a trabalho – acabou desviando a atenção pública e da mídia daquela que deveria ser o ponto central do episódio: a prisão violenta de adolescentes.
A criminalização também deu o tom da apresentação de Oro Mendes, da Comissão de Comunicação do Bloco de Luta pelo Transporte Público, que abriu sua fala com o caso de Rafael Braga Vieira. Rafael foi detido após a manifestação do dia 20 de junho de 2013, quando milhares de pessoas tomaram o centro do Rio de Janeiro, seguindo os protestos contra o aumento das passagens de ônibus. Ele levava duas garrafas de produtos de limpeza – água sanitária e desinfetante Pinho Sol – consideradas “artefato explosivo ou incendiário” pela polícia e pelo juiz responsável pelo caso. Ele não participava do protesto e não tinha relação com as pessoas manifestantes. O rapaz jovem, negro, de família pobre, catador de latinhas, tinha 24 anos e foi a primeira pessoa que teve sua condenação vinculada aos grandes protestos.
O Bloco, composto por diversas organizações que se opõem aos aumentos das passagens e querem um transporte coletivo público e popular de qualidade em Porto Alegre, identificou um aumento de repressão em 2013. “Nesse ano, já estávamos pautando a questão da criminalização dos movimentos e das lutas”, disse Oro. Ali também tiveram início os processos contra as e os militantes. Em março de 2013, uma pessoa foi presa durante um ato contra o aumento das passagens; em junho, durante as grandes manifestações no país, foram detidas 83 pessoas ligadas ao Bloco. Atualmente, mais de 100 pessoas já sofreram algum tipo de ação legal por acreditar no movimento.
Oro lembrou de outro momento de grande tensão, ocorrido em junho de 2014, durante ato público para discutir e denunciar os abusos cometidos pelo poder público para garantir a realização da Copa do Mundo da FIFA. “Éramos talvez 200 pessoas e ao nosso redor se reuniram cerca de mil policiais, portando bombas, armas, cassetetes e escudos”, relatou. “Fomos cercados e quando tentamos começar a marcha, a polícia passou a atirar diretamente bombas de efeito moral, em cima de nós. Pânico, pessoas feridas, num protesto que era totalmente pacífico”.
O juiz Roberto Lorea apresentou o trabalho da Associação Juízas e Juízes para a Democracia (ADJ), que existe há 25 anos no RS, mas estava pouco atuante. Frente ao atual contexto e à necessidade de resistência, o coletivo foi retomado: “começamos a ficar mais inquietos do que o usual e decidimos promover ações de sensibilização e informação, mostrando o ‘outro lado’, dos movimentos sociais”.
Para marcar a retomada das atividades, a AJD/RS promoveu em março uma visita de advogadas e advogados, promotoras e promotores, juízas e juízes a um acampamento, dois assentamentos e uma cooperativa do MST. Outras atividades acontecerão ao longo do ano, entre as quais debates com representações de movimentos sociais que sofrem hoje o processo de criminalização de suas lutas.
Uma democracia plena só existe se houver liberdade de expressão. “Nos preocupa que se antes os excessos de violência eram pontuais, agora viraram regra”, alertou. “Parece que não basta liberar a rua. Tem que liberar, tem que bater, tem que recolher e levar para o presídio. É uma série de ações de cunho intimidatório, de violação de direitos básicos”.
Assim, a importância de aproximar profissionais do Direito de realidades sociais sobre as quais têm que decidir no cotidiano, e apresentar os vários outros lados. “Queremos descontruir a ideia de que é possível ser neutro. Ao assumir uma pretensa neutralidade entre oprimido e opressor, estamos nos aliando ao opressor”.