O Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN), a Fundação Luterana de Diaconia (FLD), o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI/Sul) realizaram, de 14 a 16 de dezembro, a Missão Ecumênica em Solidariedade aos Povos Indígenas Kaingang e Guarani Mbya do Rio Grande do Sul.
O objetivo foi denunciar o contexto de desmonte, de retirada de direitos, de intolerância e violências, especialmente no que se refere aos povos indígenas, historicamente discriminados, violentados e invisibilizados pelas políticas públicas. A missão também se manifestou contra a criminalização das defensoras e defensores de direitos humanos no estado, em especial na região norte. A iniciativa foi do Fórum Ecumênico ACT Brasil (FE ACT Brasil).
A programação teve início no dia 14 de dezembro, em Porto Alegre (RS), com a apresentação do Informe da Sociedade Civil sobre a situação dos DHESCAs e o lançamento das publicações Tecendo Vidas, do COMIN, e Fé, Justiça de Gênero e Incidência Pública – 500 anos da Reforma e Diaconia Transformadora, da FLD.
No dia 15 de dezembro, a Missão Ecumênica esteve na Terra Indígena Carazinho, onde vivem 35 famílias. Até o final de 2016, a comunidade estava acampada às margens da BR 386. Mesmo que as condições de vida fossem complicadas, o local era de fácil acesso, o que favorecia o comércio de artesanato, principal fonte de renda e subsistência das famílias.
Devido a uma série de ameaças e de ações judiciais, pedindo a reintegração de posse, que foi atendida pela justiça federal, os Kaingang se viram forçados a buscar outro local. O novo espaço está localizado no Parque da Cidade, com 217 hectares; porém os Kaingang ocupam uma pequena fração, apenas sete hectares. A comunidade está mobilizada e pressionando o órgão indigenista para concluir os estudos preliminares. Além de toda a morosidade no que tange a demarcação de seu território, os Kaingang revelam muita preocupação, pois não têm acesso à água potável e à terra para o plantio.
Em meio a esta luta, estão jovens como Fabiele da Rosa Claudino, 16 anos, que mora em Carazinho. “A gente sofre discriminação, sofre racismo, sofre bullying. Eu fico triste, mas meu ânimo volta de novo”, disse. “Gosto de ser indígena. A gente é o que é. As pessoas brancas são diferentes, assim como nós somos diferentes”.
Fabiele faz artesanato com a mãe, para comercializar, e planeja voltar para a escola. “Meu desejo é mostrar para os brancos como somos, nossa cultura, nossa comida, nossas danças. Se eles nos conhecerem melhor, vão nos entender. Gostaria de mostrar minha origem para as pessoas e dizer para todos que podemos estar em mundos diferentes, mas somos todos iguais”.
“Nossa luta vem desde a chegada dos europeus, que tiraram nossa terra, nossa cultura, nossas marcas tribais”, afirmou o cacique da Terra Indígena Rio dos Índios, Luiz Salvador, liderança dos Kaingang no estado, que participou do encontro. Hoje, o maior inimigo é outro: “estamos sendo engolidos por um governo, por um capitalismo que não enxerga como a situação está hoje, não enxerga os indígenas”.
Ivo Galles assumiu como cacique em Carazinho em 2012. “Queremos nossa terra”, disse. “Não somos nós os invasores, quem invade são os fazendeiros. A gente ainda está aqui como resultado da luta dos antigos, que agora é nossa luta. Se não tivermos terra, para onde vão nossos filhos, nossos jovens, nossos velhinhos?”.
No dia 16 de dezembro, a Missão Ecumênica visitou a área retomada em Maquiné pelos Guarani Mbya, que viviam acampados nas margens de rodovias no litoral do Rio Grande do Sul.
O local, que fica no do território tradicional do Povo Guarani, estava sob o domínio do Governo do Rio Grande do Sul e servia à Fundação Estadual de Pesquisa e Agropecuária/Fepagro, recentemente extinta pelo governo do RS.
Os Guarani reivindicam a demarcação da terra; no entanto, a Funai vem se omitindo, no sentido de constituir o grupo de trabalho para proceder os estudos circunstanciados da terra. Na área vivem atualmente 18 famílias, que estão mobilizadas e articuladas com importantes setores da sociedade, para manter a posse da área e enfrentar uma ação de reintegração de posse que tramita na Justiça Federal.
“É a primeira vez que o povo Guarani retoma uma área aqui no estado”, disse o cacique Cirilo Pires, da Lomba do Pinheiro, representante dos Guarani do RS. “Foi uma retomada autônoma: ninguém disse para nós fazermos, nenhuma organização, nenhum político, as famílias decidiram e viemos.”
De Maquiné, a Missão Ecumênica seguiu até a comunidade de Terra Capivari, acampamento que existe há 45 anos nas margens da RS 040, município de Capivari do Sul. Dez famílias vivem ali, sem água potável, saneamento básico e sem habitação. O cenário é de absoluta miserabilidade. Toda a região é de ocupação tradicional; no entanto, há muito tempo está invadida por fazendeiros. A comunidade se mantém com trabalhos eventuais e com a venda de artesanato. Alunas e alunos estudam em um espaço precário.
Em 2012, a Funai constituiu o Grupo de Trabalho para proceder aos estudos de identificação e delimitação da terra, mas este encontra-se paralisado. Existe a oposição de fazendeiros e do Estado contra a demarcação. Em anos passados, o Estado do Rio Grande do Sul, para impedir a demarcação de Capivari, articulou com a Funai a transferência das famílias para uma pequena reserva dentro de uma área devoluta, chamada de Granja Vargas. Uma região de solo improdutivo, arenoso e onde não há condições para a manutenção da cultura do povo.
Por que uma missão Ecumênica?
Desde 2015, organizações realizam missões ecumênicas para estarem junto a comunidades e territórios ameaçados e criminalizados. Duas estiveram no Mato Grosso do Sul, com os Guarani Kaiowá, e, em novembro deste ano, em Pau D´Arco (PA). A participação é de representações de igrejas, organismos ecumênicos e inter-religiosos, organizações da sociedade civil e defensoras e defensores de direitos humanos. A iniciativa é do Fórum Ecumênico ACT Brasil (FE ACT Brasil).
A Missão Ecumênica emitirá um documento denunciando as violações dos direitos indígenas que será encaminhado a órgãos públicos no Brasil e a organismos internacionais. Para o secretário geral da Aliança ACT, Rudelmar Bueno de Faria, que veio de Genebra e participou da iniciativa, visitar a comunidades indígenas permitiu entender no detalhe a amplitude do atual projeto político que está liquidando direitos já conquistados. “Vamos atuar a partir da influência de nossos membros e do seu engajamento, em uma estratégia conjunta, pela justiça e dignidade de indígenas brasileiros, quilombolas e outras comunidades excluídas”. ACT, uma organização internacional, com sede na Suíça, reúne 146 organizações de 125 países (no Brasil, as organizações membro são a FLD, Diaconia, Koinonia e CESE), tem assento consultivo na ONU e incluirá as situações debatidas no Rio Grande do Sul em fóruns internacionais e no Fórum Permanente das Nações Unidas para Questões Indígenas.
“É fundamental que o movimento ecumênico conheça a realidade indígena e fortaleça a denúncia de como o governo brasileiro e o sistema agropecuário vêm desrespeitando cada vez mais o direito dos povos originários à terra, para sua própria vantagem”, disse a secretária geral do CONIC, Romi Bencke. “Por isso, a iniciativa: ser ecumênico, na sua essência, é fazer a defesa dos direitos”. Para ela, outro elemento importante é combater a ideia de que “fazer missão” significa converter as pessoas ao cristianismo: “pelo contrário, queremos afirmar a liberdade religiosa e garantir o direito de todas e todos ao exercício da sua espiritualidade”.
Questões vivenciadas nestas visitas também deverão ser refletidas no relatório de análise de risco por crimes internacionais contra os indígenas brasileiros a também ser apresentado à ONU e que está sendo elaborado com a participação da professora de direito Fernanda Frizzo Bragato, que participou das visitas as aldeias. Ela é coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), que tem campus em São Leopoldo e Porto Alegre. A professora Fernanda informou que o documento dará ênfase as violências contra os Guarani Kaiowá a partir dos dados do Relatório de Violência contra os Povos Indígenas, lançado neste ano pelo CIMI.
Fotos: TIago Greff/Banco de Imagens da FLD