Uma página na internet que permite a qualquer pessoa acessar mais de 900 mil páginas de registros oficiais de abusos da ditadura militar foi lançado, no dia 9 de agosto, em São Paulo. O “Brasil: Nunca Mais Digital” – www.bnmdigital.mpf.mp.br – é o mais expressivo desdobramento de um projeto liderado, nos anos 80, pelo pastor presbiteriano Jaime Wright e pelo arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns.
Os documentos, que datam das décadas de 70 e 80, foram copiados e contrabandeados para a sede do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em Genebra, Suíça, e para o Center for Research Libraries (CRL), em Chicago, Estados Unidos, entre o final da década de 70 e o início dos anos 80.
Em 2011, o próprio secretário geral do CMI, reverendo Dr Olav Fykse Tveit, trouxe os documentos salvaguardados nos arquivos do CMI e entregou, durante um ato público, ao procurador geral da República, Roberto Gurgel. Agora, os arquivos restaurados estão à disposição do público na rede mundial de computadores através de uma página chamada “Brasil: Nunca Mais Digital”. O nome remete ao histórico livro, lançado em 1985, que trazia detalhes de crimes de Estado cometidos contra cidadãos durante os anos de regime militar. O livro “Brasil: Nunca Mais!”, que está em sua 37ª edição, é um importante registro de um tempo marcado pela prisão de mais de 50 mil cidadãs e cidadãos durante a ditadura militar
Para muitos, o lançamento do site marca um novo período na busca do Brasil por reconciliação com seu passado. Durante seu discurso aos cerca de 200 participantes do evento, na sede da 3ª Região da Procuradoria Geral da República, Rosa Maria Cardoso da Cunha, coordenadora dos trabalhos da Comissão da Verdade, referiu-se ao BNM como sendo a primeira Comissão da Verdade do país. “O que vocês fizeram estabeleceu parâmetros para nosso trabalho”, afirmou.
Um dos principais personagens por trás do projeto BNM Digital é o procurador regional Dr. Marlon Alberto Weichert, que trabalhou estreitamente com o CMI e o CRL a fim de possibilitar a repatriação dos documentos – que incluem provas desaparecidas sobre os arquivos mantidos pela Corte Suprema Militar – sua digitalização e a montagem do website.
Weichert expressou sua gratidão ao ex-secretário geral do CMI, reverendo Philip Potter, e ao ex-funcionário do CMI responsável pela coordenação do BNM, reverendo Charles Harper. “O apoio do CMI foi crucial neste processo todo”, disse. “Celebramos hoje a criação do website, mas também honramos as vítimas e sobreviventes e refletimos sobre o poder da informação e a força da verdade”, concluiu.
Marcelo Zelic, diretor do Armazém Memória, organismo que trabalhou em estreita colaboração com a procuradoria regional, enfatizou o trabalho do reverendo Harper, que recebeu os documentos e os catalogou nos arquivos do CMI, em Genebra. “Graças a este trabalho cuidadoso, podemos hoje oferecer estas informações a mais de 170 processos criminais que estão em andamento”, afirmou.
Ao referir-se ao recente desaparecimento de um morador da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, Zelic traçou um paralelo entre o desrespeito aos direitos humanos relatado no BNM e o quadro atual do país. “A pergunta sobre o paradeiro de Amarildo é a mesma feita pelas famílias dos desaparecidos daquela época a Dom Paulo Evaristo Arns e Jaime Wright”, afirmou.
O discurso de Zelic foi seguido por um forte relato de Guiomar Lopes, sobreviventes de tortura e quatro anos de prisão.
O BNM teve o apoio direto do CMI e da Arquidiocese de São Paulo, que estiveram representados no ato de lançamento. O Arcebispo de São Paulo, Cardeal Dom Odilo Scherer, indagou acerca do que diriam seu predecessor Dom Paulo Evaristo Arns e o Rev. Jaime Wright nesta ocasião. “Tenho certeza que agradeceriam a homenagem, mas seriam firmes em nos dizer: que nunca mais aconteça!”.
O moderador do Comitê Central do CMI, Rev. Dr. Walter Altmann, partilhou alguns episódios que ligam o CMI e o movimento ecumênico a lutas de defesa dos direitos humanos no Brasil, América Latina e ao redor do mundo. Agradecendo aos doadores do CMI de ontem e de hoje, que tornam ações como esta possíveis, Altmann exortou a solidariedade internacional como uma das características mais marcantes do movimento ecumênico. “Ao construir pontes de justiça e paz ao redor do mundo estamos dizendo que nenhum regime opressor pode sufocar a esperança e a solidariedade para sempre”, disse Altmann.
O evento, presidido pelo procurador federal dos Direitos do cCidadão, Aurélio Veiga Rios, contou com testemunhos da deputada federal Luiza Erundina, do presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão e do senador Aloisio Nunes Ferreria.
Texto e foto: Marcelo Schneider/Conselho Mundial de Igrejas.