Conhecida desde os anos 80, a Aids tornou-se epidemia ligada à grupos. Inicialmente, os ditos “grupos de risco”, que seriam as pessoas pertencentes às categorias: homossexuais, profissionais do sexo, usuários/as de drogas injetáveis e pessoas hemofílicas (necessitam de constantes transfusões de sangue). A visão fragmentada sobre a Aids estava fortemente associada aos homens gays e bissexuais de classe média e alta, com alto nível de escolaridade e residentes nos grandes centros urbanos. A partir dos anos 90, houve uma migração da epidemia rumo ao interior do país, onde os casos cresceram aceleradamente entre homens e mulheres heterossexuais, pobres e de baixa escolaridade. A epidemia não tardou a atingir as pessoas idosas. Atualmente, a epidemia no Brasil se manifesta na feminização e juvenilização da doença, já que se evidencia um aumento de casos entre os jovens de 13 a 19 anos e segue crescendo também entre mulheres jovens e em idade reprodutiva.
Com uma visão de mundo mais inclusiva e integradora, defendida pelo teólogo, Rogério Oliveira de Aguiar, em sua pesquisa acadêmica, percebeu que “a infecção pelo vírus HIV é universal e que os impactos são ainda mais devastadores entre a população mais empobrecida”. Para ele, a ideia de risco deve ser abordada a partir das vulnerabilidades, de modo que a pessoa que vive com HIV/Aids não seja culpabilizada. “A vulnerabilidade social está associada a outras formas de vulnerabilidade como a programática e a individual. A primeira, diz respeito à ineficiência nos serviços prestados pelo Estado no sentido de assistência, prevenção e garantia dos direitos. A segunda é uma consequência da falta de informação correta, propagação do senso comum e outros fatores que fazem com que a pessoa se exponha a situações de ‘risco’,” explicou.
Aguiar é assistente de projetos na Fundação Luterana de Diaconia e atua como facilitador na exposição itinerante organizada pela FLD, Nem Tão Doce Lar. Defendeu, recentemente, a dissertação “A práxis diaconal como resposta cristã à epidemia de HIV/Aids”, na Escola Superior de Teologia, EST, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. O pesquisador é integrante do Programa Teologia e HIV/Aids na América Latina, financiado pela Igreja Luterana da Suécia. Ele que faz trabalho voluntário, realizou uma pesquisa participativa na instituição não governamental Casa Fonte Colombo (CFC), ligada à Igreja Católica, coordenada por Freis Capuchinhos Franciscanos e mantida pela Associação Literária São Boaventura. A CFC foi fundada em 1999 e trabalha pela prevenção, acolhida, reestruturação dos laços familiares, reinserção social e incidência política. A sede fica na rua Hoffmann, 499, bairro Floresta, Porto Alegre.
Em breve, a biblioteca da EST vai disponibilizar o trabalho para a leitura. Enquanto isso confira um pouco da pesquisa na entrevista a seguir.
FLD – Como vê as políticas públicas com vistas à superação da epidemia no Brasil?
Aguiar – As políticas públicas no campo do HIV, no Brasil, são tidas como um modelo internacional. A quebra da patente dos medicamentos por parte do governo brasileiro foi um feito histórico. No início da epidemia os movimentos organizados da sociedade civil tiveram um papel muito importante na garantia dos direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids. Hoje, acredita-se que a Aids esteja controlada e que a situação está estabilizada. As políticas avançaram muito, porém, ainda não podemos comemorar e fechar os olhos para os mais de 35 mil novos casos de infecção todos os anos. Porto Alegre lidera em casos de HIV/Aids no Brasil. E a feminização, juvenilização e pauperização da doença constituem um grande desafio às instituições governamentais e da sociedade civil que trabalham o tema. A Aids não é um assunto que diz respeito apenas aos/as profissionais da saúde, mas é um assunto que deve envolver esforços de toda a sociedade. Por isso, a CFC tornou-se um referencial nesse trabalho. A coordenação da instituição, composta por Freis Capuchinhos Franciscanos, possui uma visão ampla desta realidade. Os/as voluntários/as da CFC participam de cursos de capacitação e qualificação o que possibilita que essas pessoas estejam presentes em instâncias decisórias como Conselho Regional de Assistência Social, Fórum ONG/Aids – RS, Comissão DST/Aids do Conselho Mundial de Saúde e outros, com a finalidade de promover um maior controle social dos recursos públicos destinados às políticas de HIV/Aids. A CFC é um modelo de práxis diaconal que atua na sociedade civil a partir de uma identidade cristã, e estende o seu trabalho a pessoas de todas as confissões religiosas.
FLD – Como é o acesso aos medicamentos e o uso deles?
Aguiar – A função dos antirretrovirais é inibir a reprodução do vírus no organismo humano. Mas, falar sobre os antirretrovirais e o seu uso é um assunto um pouco mais complexo. Muitas pessoas acreditam que, por sermos um país modelo no que se refere à distribuição gratuita de medicamentos contra o HIV desde 1996, a doença no Brasil não é mais motivo de preocupação. É lamentável que a publicidade focada na prevenção se concentre apenas em datas festivas como o carnaval, por exemplo. Os mais jovens, muitas vezes, encaram a Aids como se fosse um simples resfriado. Pensam que basta tomar os remédios e o problema está solucionado. Mas a realidade é bem diferente. O famoso coquetel anti-HIV é composto de medicamentos extremamente agressivos com organismo humano. O uso correto deles está diretamente ligado às condições de vida dos/as usuários/as. Pessoas que não têm as suas necessidades básicas garantidas, dificilmente terão o uso dos medicamentos como uma prioridade. A preocupação com a sobrevivência faz com que muitas pessoas negligenciem o tratamento. Por esse motivo é fundamental que se olhe para o contexto dessas pessoas e os problemas apresentados no entorno.
FLD – Qual é a melhor forma quando tenho que me referir a uma pessoa vivendo com doença ou que tenha sido infectada pelo vírus?
Aguiar – A ideia é que o vírus ou a doença não usurpem a identidade da pessoa portadora do vírus ou que vive com a Aids. Trata-se de uma valorização da identidade e individualidade humana. Uma pessoa não pode ser identificada pela sua doença, isso seria uma forma de seleção/discriminação. O mais adequado é dizer “pessoa vivendo com HIV/Aids” quando ela já desenvolveu a doença. No caso da pessoa que vive com o vírus, mas que ainda não tenha manifestado a doença, usualmente se diz “pessoa HIV positiva”. É importante que a palavra “pessoa” anteceda as siglas HIV e Aids. Pessoas vivendo com HIV/Aids têm uma vida normal como quaisquer outras, desde que sigam as prescrições médicas e não abandonem o tratamento antirretroviral.
FLD – Por que ainda existem setores cristãos que não abordam a Aids com a devida ênfase?
Aguiar – A Aids estava ligada a uma noção de transgressão e consequência. Em alguns espaços religiosos o forte puritanismo reforçou a ideia de que a Aids era o merecido castigo por uma conduta imoral. Enquanto a doença estava restrita aos supostos grupos de risco, as alas mais conservadoras das igrejas emitiam posições condenatórias e acreditavam que os/as membros das comunidades cristãs estavam a salvo da epidemia por seguirem as doutrinas morais das igrejas. Isso aumentou a vulnerabilidade, especialmente das mulheres, à infecção pelo vírus HIV. Muitas acreditavam que o matrimônio e o seguimento dos preceitos morais conferia imunidade frente à epidemia. O resultado é a crescente feminização da Aids. Estruturas machistas e patriarcais têm contribuído para o avanço da Aids entre o público feminino. Algumas igrejas desenvolveram ações pontuais e isoladas de assistência a pessoas vivendo com HIV/Aids. Tanto a Igreja Evangélica de Confissão Luterana – IECLB quanto a Igreja Católica Romana – ICAR, possuem posicionamentos oficiais sobre o tema. São cartas pastorais com excelentes subsídios bíblicos e teológicos para atuação de cristãos/ãs no serviço (diaconia) de acolhimento e assistência a pessoas vivendo e convivendo com HIV/Aids.
FLD – A partir do seu trabalho, como entende ser possível mudar essa realidade?
Aguiar – Para que a Igreja Cristã auxilie na contenção da epidemia de Aids no Brasil, é necessário apresentar sinais concretos do evangelho de Jesus Cristo. Isso só é possível através da ‘práxis diaconal’ que se converte em instrumento de denúncia, libertação e controle social em favor daqueles/as que se encontram à margem. A CFC é um exemplo de trabalho diaconal que valoriza o ser humano em sua integralidade. A espiritualidade cristã e franciscana é fundamental, pois alimenta e anima para a prática, e a visão ecumênica evidenciada no atendimento ao público busca atender a todas as pessoas sem barreiras confessionais. Cito uma frase do reformador Martim Lutero, que acredito ser um chamado à responsabilidade diaconal: ‘Observa o que Cristo fez por ti e por todos, de forma que aprendas o que deves fazer em favor dos outros’.
Foto: Rogério Aguiar com a banca examinadora composta pelos professores doutores Márcia Paixão, Valburga Streck e Rodolfo Neto