Ao Dr. Torquato Lorena Jardim – Ministro da Justiça
Ao Dr. Eliseu Padilha – Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República
À Dra. Grace Mendonça – Ministra da Advocacia Geral da União/AGU
Ao General Franklimberg Ribeiro Freitas- Presidente da Fundação Nacional do Índio/FUNAI
À Dra. Ela Wiecko V. De Castilho – Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão-Câmara Temática Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais
À Ministra Cármen Lúcia – Presidente do Supremo Tribunal Federal
Ao Senador Eunício Lopes de Oliveira – Presidente do Senado
Ao Governador do Estado do Rio Grande do Sul – José Ivo Sartori
Ao Presidente da Assembleia Legislativa – Deputado Edegar Pretto
Ao Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa – Deputado Jeferson Fernandes
Prezadas autoridades,
Entre os dias 14 a 16 de dezembro de 2017, o FE ACT BRASIL (Fórum Ecumênico ACT Brasil) realizou a Missão Ecumênica em Solidariedade aos Povos Indígenas Guarani e Kaingang do Rio Grande do Sul, atividade organizada pelo Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN), Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e Fundação Luterana de Diaconia (FLD). Os objetivos da Missão foram verificar o contexto de ameaças sofridas pelas populações indígenas, resultantes de um modelo agrícola agroexportador, ouvir as demandas das comunidades indígenas, em especial no que diz respeito a demarcações de terras, ao acesso à água, direito de viver sua cultura e espiritualidade. No decorrer da Missão Ecumênica foi denunciado o intenso processo de criminalização das defensoras e defensores de direitos humanos no estado, em especial na região norte.
As visitas ocorreram na comunidade Kaingang, em Carazinho, onde vivem 35 famílias, e em duas comunidades Guarani Mbya, sendo que uma em Maquiné, com 22 famílias, e outra em Capivari, com 10 famílias. A organização internacional Aliança ACT, com sede em Genebra, Suíça, que reúne 146 organizações de cooperação cristãs e igrejas protestantes e ortodoxas de 125 países e tem assento consultivo na ONU, participou da missão, por meio do seu Secretário Geral, Rudelmar Bueno de Faria.
A Missão Ecumênica acolheu a denúncia da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF), cujos membros e defensoras e defensores de direitos humanos passaram a ser investigados, após enviarem Notícia de Fato ao Ministério Público Federal, pedindo investigação das alegações de atuação desproporcional da Polícia Federal e da Brigada Militar, em ação contra indígenas em Sananduva.
Como reação, a Polícia Federal abriu procedimento investigativo contra todas e todos integrantes da coordenação da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF), advogados que subscreveram o pedido e o indigenista atuante no CIMI, Roberto Liebgott. Importante destacar que a CDHPF é uma entidade da sociedade civil, que atua com a promoção dos direitos humanos desde 1984. O procedimento investigativo acusa estas pessoas de terem feito uma denúncia falsa.
Esta acusação é infundada, uma vez que o que fizeram as defensoras e os defensores de direitos humanos foi reportar às autoridades a necessidade de averiguação de possíveis excessos praticados por policiais federais e a Brigada Miltitar em ação contra indígenas. Na primeira oitiva, realizada no início de setembro, o delegado da Polícia Federal se recusou a informar qual seria a qualidade destes no processo, se acusadas, acusados ou testemunhas.
As e os integrantes da CDHPF, naquele momento, exerceram seu direito constitucional de permanecer em silêncio como forma de protesto contra a tentativa de criminalização, e foram “advertidos” de que poderiam sofrer medida de busca e apreensão em suas residências. A investigação ainda não foi arquivada, tendo sido prorrogado o prazo de vigência pelo delegado, para que fossem coletados os depoimentos das demais pessoas investigadas.
Em relação aos povos e comunidades indígenas visitadas, a Missão verificou que estes enfrentam problemas e desafios por não terem as suas terras demarcadas, e estão em condição de absoluto abandono.
Há que se considerar, neste contexto, a negligência e omissão da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), do Ministério da Justiça e da Presidência da República no tocante aos estudos de identificação e delimitação das terras. Somam-se a isso o fato de os povos Kaingang e Guarani Mbya reivindicarem seus direitos e regiões e realidades sociais onde afloram o preconceito étnico e o racismo institucional, que se intensificam quando os povos se manifestam e se mobilizam pela demarcação de porções de terra dentro de seu território ancestral. As lideranças indígenas que lutam em prol de suas comunidades sofrem ainda com a perseguição e a criminalização por parte de órgãos de estado.
Na visita aos Kaingang da Terra Indígena Carazinho, foi relatado que ocupavam, até o final do ano de 2016, as margens da BR 386. E, mesmo que as condições de vida lá fossem complicadas, o local era de fácil acesso, o que favorecia o comércio de artesanatos, a principal fonte de renda e subsistência das famílias. Disseram que devido a uma série de ameaças e de ações judiciais, pedindo a reintegração de posse, que foi atendida pela Justiça Federal, se viram forçados a buscar outro local para montar acampamento. A comunidade ocupou o Parque da Cidade, onde atualmente está vivendo. A superfície deste parque é de 217 hectares, porém os Kaingang habitam uma pequena fração da área, de apenas 07 hectares.
A comunidade está mobilizada e pressionando o órgão indigenista para concluir os estudos preliminares de identificação e demarcação da terra. Corroborando com a pressão da comunidade, o MPF ajuizou Ação Civil Pública junto à Justiça Federal, no sentido de pedir agilidade do órgão indigenista para a conclusão do estudo. A ação foi julgada e estabelecidos prazos para a que a FUNAI agilize os estudos e inicie as demais etapas do procedimento demarcatório.
Além de toda a morosidade no que tange à demarcação de seu território, os Kaingang revelam muita preocupação pela falta de acesso à água potável e à terra para o plantio. Conforme o MPF, a água que a comunidade recebe, por meio de um caminhão pipa, para o período de uma semana é, conforme parâmetros da OMS, o equivalente as necessidades de uma pessoa por dia.
Lideranças indígenas questionam duramente a Advocacia Geral da União, que editou o Parecer 001/2017, no qual estabelece que a administração pública federal deverá, a partir deste parecer, adotar, no tocante as demarcações de terras, as 19 condicionantes do caso Raposa Serra do Sol e a tese do Marco Temporal da Constituição Federal de 1988. As lideranças também manifestaram preocupação com os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (PL 31/2015, PEC 215/2000, PLP 212/2012), pois estes expressam, em seus conteúdos, a restrição dos direitos territoriais das comunidades indígenas e quilombolas, além de um profundo preconceito e racismo institucional.
Na visita ao acampamento Capivari, constatou-se o sofrimento das pessoas que vivem efetivamente à margem, sem terra, sem água potável, sem habitação, sem alimentos. A comunidade está localizada há mais de 40 anos na beira da RS 040, município de Capivari do Sul. Vivem no local cerca de 10 famílias, em um acampamento extremante precário e onde sofrem pressão dos fazendeiros locais, que não querem a presença indígena em função da luta pela demarcação de terras.
Toda aquela região é de ocupação tradicional Guarani, no entanto, há muito tempo tomada por fazendeiros. A FUNAI constituiu o Grupo de Trabalho para proceder aos estudos de identificação e delimitação da terra no ano de 2012, que está paralisado. Existe a oposição dos fazendeiros e do Estado contra a demarcação. Em anos passados, o estado do Rio Grande do Sul, para impedir a demarcação de Capivari, articulou com a FUNAI a transferência das famílias para uma pequena reserva em uma área devoluta, chamada de Granja Vargas, uma região de solo improdutivo, arenoso e onde não há condições para a manutenção da cultura do povo.
Os povos indígenas brasileiros contam, atualmente, com um amplo e protetivo marco jurídico nacional e internacional. Além de serem sujeitos, enquanto indivíduos ou grupos minoritários, a todos os direitos humanos reconhecidos nacional e internacionalmente, sem qualquer discriminação, os povos indígenas são titulares de certos direitos coletivos e diferenciados baseados no direito de conservar e manter sua própria cultura, hábitos e costumes.
Dentre estes direitos, destacam-se as terras que tradicionalmente ocupam (Art. 231, caput e § 1º, da Constituição Brasileira de 1988 (CF/88), art. 26 da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, art. 13 e 14 da Convenção nº 169 da OIT e art. XXV, 2, da Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas), a autodeterminação (Art. 3º da Declaração da ONU e art. III e XXI da Declaração Americana.), e a consulta (Art. 6º da Convenção 169 e § 3º do art. 231 da CF/88) ou consentimento (Art. 6,2, da Convenção 169, art. 19 e 32,2 da Declaração da ONU e art. XXIII, 2, XXVIII, 3 e XXIX, 4 da Declaração Americana.) livre, prévio e informado acerca de medidas que possam afetar seus bens e/ou seu modo de vida.
No entanto, o Estado Brasileiro não só falha na sua obrigação de efetivar estes direitos, mas tem se empenhado em criar enormes barreiras para sua fruição, inclusive ameaçando a retirada destes direitos do texto constitucional. Inúmeras são as ações levadas a cabo pelo Poder Público, no sentido de minar os direitos indígenas, sobretudo o acesso às suas terras. No Poder Executivo, pode-se citar o Parecer 001/2017 da AGU, assim como o corte substancial de orçamento e o enfraquecimento da estrutura da FUNAI; no Poder Judiciário, a aplicação da tese do marco temporal em processos judiciais que questionam demarcações de terra tem levado à anulação das demarcações, em processos em que sequer as comunidades indígenas tomam conhecimento, ficando privadas do seu direito de defesa; no Poder Legislativo, paira a ameaça de diversas propostas de Emenda Constitucional, com destaque para a PEC 215 (mas não apenas ela), as quais se notabilizam pelo retrocesso em relação às conquistas de 1988 e pela total incompatibilidade com as normas internacionais aplicáveis aos povos indígenas.
A Missão Ecumênica, depois de ouvir lideranças indígenas, dirige-se também aos órgãos públicos e organismos internacionais para pedir:
- Que a AGU revise sua Portaria 001/2017, especialmente porque as 19 condicionantes do caso Raposa Serra do Sol valem apenas para aquele caso, conforme pronunciamento do próprio STF, e porque a tese do marco temporal ainda é um assunto controverso nesta Corte;
- Que o Ministério da Justiça e a FUNAI deem andamento e confiram agilidade aos procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas, sobretudo na Região Sul, e não deixem de prestar o dever de assistência às comunidades, sobretudo em relação à saúde e à educação;
- Que o STF pronuncie-se definitivamente e afaste a aplicação da tese do marco temporal para casos em que a não presença indígena na área, em outubro de 1988, decorra ou possa decorrer de expulsão forçada destas comunidades para ocupação de não indígenas, considerando-se que as comunidades indígenas afetadas não são partes nos processos e não têm oportunidade de produzir suas provas;
- Que o Congresso Nacional arquive definitivamente a PEC 215 e todos os projetos de emenda constitucional ou de lei que visem reduzir a proteção indígena contida em todo texto do artigo 231 da Constituição.
Despedimo-nos, na certeza da apreciação e acolhida das reivindicações expressas no documento.
Porto Alegre, 17 de dezembro de 2017.
Em nome de FE ACT:
CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs)
FLD (Fundação Luterana de Diaconia)
CEBI (Centro de Estudos Bíblicos)
CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço)
COMIN (Conselho de Missão entre Povos Indígenas)
KOINONIA
DIACONIA
Aliança ACT
Com o CIMI (Conselho Indigenista Missionário)
Foto: Arquivo CIMI