O Movimento Gaúcho em Defesa do Meio Ambiente e o Projeto de Extensão Construindo Ciência Crítica da UFRGS divulgaram uma carta pública para alertar o atual processo de degradação do bioma, que é único no Brasil. O documento, divulgado no dia 17 de dezembro de 2013, Dia do Pampa, e reproduzido a seguir resulta de um processo de cobrança de parte da sociedade para com os governos no que se refere à realização do seminário ocorrido no dia 10 de dezembro de 2013, no Auditório da Faculdade de Economia da UFRGS, no Painel “Bioma Pampa, Presente e Futuro: o que temos a apresentar aos gaúchos?” O objetivo do encontro foi avaliar a situação atual do bioma e as perspectivas quanto às políticas públicas voltadas tanto ao Pampa como aos Campos Sulinos, no Rio Grande do Sul. Estiveram presentes nas apresentações do painel o Professor Dr. Valério De Pata Pillar (Departamento de Ecologia da UFRGS); o Biólogo, Dr. Luís Fernando Perelló, Secretário Adjunto da SEMA-RS, representando o Governo do Estado; e o Biólogo, MSc. João Soccal Seyffarth, pelo Ministério de Meio Ambiente.
O Pampa é um bioma oficial (IBGE, 2004) compartilhado entre Brasil (RS), Argentina e Uruguai, que ocupa 63% do território estadual (176.496 km²), o que corresponde a 2,07% da superfície do Brasil. Atualmente, o bioma Pampa mantém-se, como outros, numa posição marginal nas políticas de meio ambiente. As informações disponíveis apontam para um quadro altamente preocupante com relação à conservação da biodiversidade e à sustentabilidade socioambiental no Estado, tanto na Metade Sul ou mesmo no Planalto (bioma Mata Atlântica).
Os dados mais recentes sobre a área de remanescentes do Pampa provêm de 2008. Ou seja, há cinco anos não se sabe sobre a sua situação real. As estimativas da cobertura restante, até 2002, correspondiam à existência de 41,32% de remanescentes do bioma, sendo que o resultado mais atual (2008), apontava a presença de apenas 36,03% de cobertura com vegetação nativa (CSR/IBAMA, 2010). Assim, o Pampa possuía, até aquele ano, um pouco mais de 1/3 de sua área coberta por campos nativos e outros tipos de vegetação natural, enquadrando-se como o segundo bioma mais devastado do País, depois da Mata Atlântica.
A perda acelerada de biodiversidade também acontece nos Campos de Cima da Serra, onde predominam formações campestres pertencentes ao Bioma Mata Atlântica, principalmente em decorrência do avanço desenfreado da silvicultura e das imensas lavouras empresariais de batata e de outras hortaliças, que se utilizam de alta carga de agrotóxicos. É importante destacar que estes plantios comprometem campos virgens (nunca lavrados) no Planalto das Araucárias, onde ocorrem originalmente mais de 1.100 de espécies de plantas nativas. Estas lavouras destroem áreas úmidas das cabeceiras dos rios das principais bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul (bacia do rio Uruguai e bacia do rio Guaíba), liberando elevada carga de CO2, e depreciam uma paisagem única da região, com enorme riqueza em atributos turísticos. Por outro lado, tanto o órgão ambiental do Estado como o Ibama não dispõem até agora de estrutura necessária para a fiscalização, o licenciamento e a prevenção quanto a este processo que destrói milhares de hectares de campos nativos por ano. Por exemplo, várias empresas expandem sem limites suas lavouras ou ainda mantêm milhares de hectares de plantios de pinus em imensas áreas e sem o devido licenciamento ambiental.
Somente as áreas de monoculturas arbóreas, tanto no bioma Pampa como nos Campos de Altitude (Planalto) devem superar mais de 800 mil hectares, ou seja, ultrapassam em muitas vezes a superfície das áreas protegidas do Estado, que, mesmo precariamente, não passam de 2,6% do território estadual. Cabe lembrar que os compromissos internacionais assinados pelo Brasil indicam que se alcance até 2020 a proteção de 17% da superfície de cada bioma, constituídos por unidades de conservação.
Verificou-se que as poucas iniciativas ambientais para os campos do RS somente tenham surgido de alguns anos para cá demandadas, em geral, por iniciativas de técnicos dos órgãos de meio ambiente, acadêmicos e ambientalistas. Por outro lado, a preocupação da cúpula dos governos, ao contrário, segue de forma hegemônica na busca do crescimento econômico, a qualquer custo, com base em atividades que realimentam a tendência de aprofundamento da situação, com destaque à exportação de commodities (grãos, pasta de celulose, minérios, etc.). Tudo isso, pressionado pelas federações empresariais da agricultura e pelo setor ruralista, que logrou o afrouxamento do Código Florestal Federal, em 2012.
Em definitivo, percebe-se que os governos, em geral, não buscam prover recursos orçamentários necessários para a efetiva política de proteção e promoção ambiental dos biomas brasileiros, e, ademais, impõem constantes cortes e contingenciamentos nos escassos recursos disponíveis. A “solução” dada é deixar que os projetos dos órgãos ambientais sobrevivam basicamente com recursos internacionais e/ou compensações decorrentes de projetos degradadores. A falta de vontade política do centro dos governos também se refletiu, até recentemente, na escassa articulação para a proteção ambiental do bioma, entre as esferas federal, estadual e municipal.
Até poucos anos atrás, com o “boom” do incremento à celulose, viu-se canalizar, como prioridade número um, muitas centenas de milhões de reais, de recursos advindos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outros bancos oficiais, para o atendimento do setor da silvicultura. Isso segue se aprofundando, agora, com o megaprojeto industrial da chilena CMPC Celulose, em Guaíba. Da mesma forma, verificava-se uma maior flexibilização da legislação e tentativas de não implantação, de fato, do Zoneamento Ambiental da Silvicultura (ZAS), instrumento técnico fundamental para dar limites às monoculturas arbóreas.
Para fechar o ciclo vicioso, as grandes empresas de celulose, com capital muitas vezes estrangeiro, investem muitos milhões de reais no financiamento privado de campanhas eleitorais para políticos em regiões de seu interesse e nos principais partidos brasileiros. E estes setores também investem elevados recursos na propaganda indiscriminada dos supostos benefícios de uma atividade concentradora que, na realidade, representa um maior empobrecimento da matriz produtiva do Estado.
Apesar da existência de algumas iniciativas de proteção à biodiversidade do Pampa, principalmente devido a iniciativas de parte do corpo técnico de carreira dos órgãos ambientais, estas são vistas de forma marginal pelo centro dos governos. Essas políticas carecem, portanto, de conexão com o planejamento das atividades econômicas. Ganham corpo os projetos governamentais, e dos grandes setores econômicos a eles aliados, na lógica da mundialização econômica, perversamente competitiva. Promovem-se atividades de atração de investimentos vultosos do governo federal ou de capitais externos em projetos megalomaníacos (megabarragens, megaindústrias de celulose, megamineração de carvão com suas megatérmicas poluentes). E, mais uma vez, os benefícios ficam centrados em grandes corporações econômicas que estão acostumadas a manter o processo degradatório que assegura seus lucros imediatos. Nisso, a temática ambiental é vista, em geral, como entrave aos seus objetivos.
No ápice desta insustentabilidade, ganha destaque a construção de megabarragens de irrigação para a expansão da fronteira agrícola dos mesmos tipos de monoculturas – de tolerância zero com a biodiversidade – que se espraiam pelo Rio Grande do Sul. Neste sentido, no coração do Pampa, o tema refere-se principalmente às barragens de Jaguari e Taquarembó, obras do PAC, que correspondem a investimentos públicos de algumas centenas de milhões de reais. Os dois empreendimentos tiveram como resultado imediato a destruição de mais de 1,2 mil hectares das poucas matas ciliares remanescentes dos rios da região. As obras foram interrompidas até alguns meses atrás, por apresentarem várias irregularidades, denunciadas pelo Ministério Público e Polícia Federal (Operação Solidária), principalmente no tocante a problemas no licenciamento ambiental e a denúncias de fraude nas licitações e tráfico de influência. Seus supostos benefícios não justificam o gigantismo e os volumosos recursos gastos e centralizados para irrigação de algumas dezenas de grandes propriedades que investem em monoculturas que envenenam o ambiente e a saúde do homem do campo. Infelizmente, este modelo de investimentos “deu certo” e segue dando vez a outros grandes empreendimentos que estão terminando com muitas das últimas matas em galeria na região.
Como se isso não bastasse, na mesma linha da insustentabilidade, verifica-se a retomada de megaempreendimentos poluentes representados por grandes termelétricas a carvão mineral, principalmente no município de Candiota. Isso ocorre, justamente, num momento em que os relatórios mundiais apontam para a maior certeza com relação ao papel dos gases de efeito estufa nas mudanças climáticas e na acidificação e crescente morte dos oceanos (ácido carbônico). E surgem quando outros países investem massivamente nas energias alternativas (solar e eólica), com custos decrescentes. A Alemanha, por exemplo, já investiu em energia solar o equivalente à geração elétrica de uma Itaipu e meia, apesar de seu território apresentar insolação em menos da metade do que a média do Brasil.
Lamentavelmente, a hegemonia dos grandes projetos econômicos degradantes somente se torna possível graças ao amplo incentivo governamental, principalmente, através de financiamento com recursos públicos (centenas de milhões ou bilhões de reais), provenientes em sua maioria do BNDES, e com apoio de políticos que teimam em negar a grave crise socioambiental sistêmica sobre o Planeta.
Após a apresentação das iniciativas dos representantes do governo da SEMA e MMA, reconhecemos anúncios importantes como: a Criação da Reserva da Biosfera do Bioma Pampa; o RS Biodiversidade; a atualização da lista das espécies ameaçadas do RS (SEMA) e do Brasil (MMA); alguns incentivos ao projeto Pastizales; o aperfeiçoamento das áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade no Pampa; a realização de concursos públicos para técnicos da área ambiental do Estado.
Entretanto, é praticamente inverossímil admitir-se coerência entre algumas políticas setoriais meritórias, mas que são profundamente contraditórias com as demais áreas governamentais, que prezam pela lógica do crescimento econômico, em esgotamento crescente, e que vem gerando concentração, dependência e acentuadas perdas ambientais e de culturas locais.
Apesar disso, os promotores do evento do dia 10/12, e em homenagem ao dia 17/12, Dia do Bioma Pampa, conclamam a sociedade gaúcha e brasileira no sentido de cobrar o conjunto de políticas públicas necessárias a este e aos demais biomas, com destaque aos seguintes temas:
Revisão das grandes obras de irrigação do PAC no Pampa e discussão democrática do tema dos grandes empreendimentos impactantes no Brasil com a sociedade.
Consolidação e efetivação do Mapa das Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade (Portaria MMA n. 09 de 23 de janeiro de 2007).
Realização imediata e implementação do Zoneamento Econômico Ecológico (ZEE/RS).
Manutenção da Faixa de Fronteira que assegure a soberania quanto aos investimentos estrangeiros sobre nosso território, com limite às grandes propriedades e distribuição de terras a quem mais precisa e pode desenvolver a pecuária familiar e outras atividades compatíveis com o bioma.
Implantação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), por parte do Estado, sem interferência do setor econômico ruralista, considerando a necessidade de Reserva Legal na proteção à área de vegetação nativa (20%) das propriedades.
Criação da Reserva da Biosfera do Bioma Pampa (Unesco) e inclusão do Pampa como patrimônio reconhecido pela Constituição Federal.
Criação de Unidades de Conservação no Pampa, e que permitam o manejo através da pecuária, em especial a pecuária familiar.
Reestruturação dos órgãos ambientais com fortalecimento do orçamento anual que reflita em melhores condições de trabalho e recursos humanos através de concurso público.
Inversão da lógica atual de financiamento, como o abandono de atividades altamente degradadoras, como as monoculturas e os megaempreendimentos (ligados ao carvão mineral, celulose, barragens, etc.) e apoio às atividades que historicamente conviveram de forma sustentável com os campos nativos, como no caso da pecuária familiar.
Atualização anual e monitoramento da cobertura da vegetação natural remanescente do bioma Pampa.
Porto Alegre, 17 de dezembro de 2013.
Movimento Gaúcho em Defesa do Meio Ambiente
Projeto Construindo Consciência Crítica – Inst. Biociências – UFRGS
Foto: Corujinha do mato http://institutomeridionalis.blogspot.com.br/