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Evento traz iniciativas de resistência agroecológica através do olhar de mulheres

Evento traz iniciativas de resistência agroecológica através do olhar de mulheres
15 de julho de 2016 zweiarts

Um dos projetos apresentados, que trabalha o fortalecimento da identidade do Pampa, recebe apoio do Programa de Pequenos Projetos da FLD

Quatro mulheres protagonizaram o evento “A resistência agroecológica em Herval através do olhar das mulheres do Grupo Bio”, que aconteceu na noite do dia 29 de junho na CasaNat. Escutadas por uma plateia majoritariamente feminina, Marília Gonçalves, do Sítio Cultural Ibiekos, Lia Gutierres, estudante do Iterra, Mônica Gonçalves, do Grupo Biodiversidade – que apresentou projeto apoiado pelo Programa de Pequenos Projetos da FLD – e Letícia Paranhos, do Amigos da Terra Brasil, falaram sobre as violações de direitos que a monocultura do eucalipto e da soja provocam na região do Pampa Gaúcho.

Além das denúncias, apresentaram a resistência que se dá em Herval, município do sudeste do Rio Grande do Sul, através da articulação de agricultores agroecológicos, professores e educandos. A atividade fez parte do projeto Quartas Temáticas, que acontece uma vez por mês na CasaNat.

Marília Gutierres é assentada em Herval e é mantenedora do Sítio Cultural Ibiekos. O sítio, que hoje é um espaço para trabalhar a cultura regional nos assentamentos de Herval, surgiu como um blog de denúncia das violações de direitos por parte das monoculturas da região e de distribuição de informações sobre a resistência no Pampa. Marília compartilhou um pouco deste conhecimento. “Quando o eucalipto chega ao Pampa, os problemas também chegam em diferentes níveis. Tu não tem mais o vento que tu tinha, as horas de sol diminuem, a fauna dentro da tua propriedade some. Na época de plantio, quando começam a fumegar com veneno para formiga, a invasão nas propriedades vizinhas é enorme. Tatu morre, zurrilho morre”.

Marília conta que o processo de assentamento por parte do Governo e a chegada do eucalipto na região coincidiram, o que impossibilitou a continuação de desapropriação de terras. “Foi quando elevou o preço da terra e o governo parou de comprar. Para os donos de terra não era mais negócio vender para o governo. O negócio mais lucrativo era vender terra para o plantio de eucalipto”.

Para ampliar a disputa, em 2013 ocorre a ampliação da fronteira da soja, o que causou uma explosão desta monocultura em Herval. Segundo Marília, o Pampa não é uma região boa para o plantio de soja. “Nos últimos quatro anos, tivemos três anos de seca e um ano de enchente. A produção foi baixa, foi ruim. Mas ela gera um dinheiro muito grande no giro do banco, do governo, dos royalties, da bolsa de valores. Todo esse giro do capital”.

O eucalipto tem também este giro, mas é diferente do soja. O ciclo do eucalipto, do plantio à colheita, é de aproximadamente sete anos. O ciclo do soja é anual. Todo ano tem plantio, colheita, e tem também pulverização de agrotóxico: “Os impactos do soja são arrasadores, porque a pulverização também é anual, três, quatro, cinco vezes por ano. Aí tu tem perda de enxame, perda de biodiversidade no mato, aborto de árvore frutíferas”, denuncia Marília.

Após contextualizar os embates na região, Marília, que faz parte do Conselho Consultivo do Amigos da Terra há quatro anos, enfatiza que no meio “dessa briga toda”, os agricultores estão se articulando há um bom tempo. “A gente vem tentando se organizar lá dentro do assentamento, com um grupo que tenha não só uma discussão direta sobre a produção agrícola, sobre produzir alimento de fato. Produzir alimento sim, mas também se articular para dar pau nos caras. Porque eles estão nos dando pau e nós não vamos apanhar sem gritar”.

É aí que entra o Grupo Biodiversidade. O Grupo Bio é formado por um conjunto de agricultores assentados na região do 2º distrito de Herval que tem em comum a vontade de trabalhar com a agroecologia. Pessoas que veem não só uma importância produtiva, mas também uma importância política na prática agroecológica. Seu principal trabalho é pela manutenção do uso das sementes crioulas na região, no entanto, o Grupo Bio já vem alçando novos voos, como vamos ver logo mais.

Mônica Gonçalves, integrante do Grupo Bio, relatou como se deu o começo da articulação dos agricultores. No processo de formação do grupo, uma das principais dificuldades relatadas é a deficiência de transporte na região. As estradas de chão estão na maioria do tempo em más condições. São arrumadas pela Prefeitura, como sinalizou Mônica, somente nos períodos de colheita do eucalipto ou da soja. Manutenção esta que dura pouco. Assim que as dezenas de caminhões passam, os buracos voltam. Não há transporte público. O que interliga os assentamentos é o ônibus escolar, que é um determinante para a existência ou não das aulas nas escolas. “Se o ônibus
estraga, não tem aula. Se chove, não tem aula. Se o motorista fica doente, não tem aula. E aí quando ver são 10 dias sem aulas”, explica Marília.

O problema da locomoção e das distâncias interfere no fluxo escolar e dificulta a existência de reuniões do Grupo Bio. No entanto, isso não impediu que os agricultores se reunissem, se articulassem e organizassem a produção. Os frutos já surgiram. No dia 2 de julho, a produção agroecológica do Grupo Biodiversidade esteve à disposição na feira Frutos da Resistência, que ocorreu em frente a CasaNat. A feira reuniu, além dos produtos de Herval, produção de Maquiné e materiais de autossustento do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.

Mônica explicou que o projeto para o próximo ano do Grupo Bio é a organização interna para fortalecer a troca de saberes e a articulação política. “Vamos nos articular para debatermos a exclusão dos agrotóxicos do plantio, debater os transgênicos.” Em mais um bonito movimento de resistência em Herval, os saberes do Grupo Biodiversidade foram compartilhados com os estudantes de duas escolas. A troca fez parte do projeto Fortalecendo os Saberes do Pampa, que, em 2015 e 2016, trabalhou a identidade pampeana com mais de 60 educandos das escolas da região: a EMEF Ernesto Che Guevara e EEEF Corintho Ávila Escobar. O trabalho, apresentado pela Letícia Paranhos, do Amigos da Terra Brasil, é uma parceria com o Grupo Biodiversidade e com o Sítio Cultural Ibiekos e teve financiamento da Fundação Luterana de Diaconia (FLD). “Falamos “projeto” porque teve apoio da FLD, mas na verdade são ações contínuas que o Amigos da Terra, o Grupo Biodiversidade e o Sítio Ibiekos tivemos e seguimos tendo em Herval”. Saídas de campos, produção de um diário de
bordo, atividades em salas de aula, produção de mapas. Durante meses, as atividades com estudantes trabalharam a identidade de ser quem são. Segundo Letícia, muitas crianças não se identificavam como assentados, não sabiam o que eram os assentamentos. E isso chocou a educadora. “A identidade do campesino era realmente algo que precisava ser reforçada”, observou Letícia.

O contato com os estudantes e com os professores fez com que as educadoras Marília, Letícia e Mônica pensassem o que era uma escola do campo em Herval. “O conteúdo é igual do urbano. Aí é aquela tendência de ir para cidade, né? Aqui é ruim, aqui é ruim. Vão para a cidade! E quando a gente chega com o projeto para trabalhar os saberes do campo, isso é um choque”, evidencia Marília. Com danças, alongamentos, paródias de músicas e com ações aparentemente simples (como propor um círculo ou passar a palavra para os próprios educandos), as estruturas foram se flexibilizando e as possibilidades aumentando. Os educandos participaram da produção coletiva de um
mapa, através do Google Earth, em que identificaram seu caminho de casa até a escola, os assentamentos da região, mapearam a presença da monocultura.

“O fim que buscamos nestas ações é o fortalecimento da soberania alimentar do território. Acreditamos que o meio para chegar nisso é conservando os saberes populares da região”, evidencia Letícia. Para isso, saídas de campo foram primordiais. Os estudantes das duas
escolas foram levados ao Sítio Cultural Ibiekos e tiveram como guia os agricultores do Grupo Bio. “Com essa troca, levando em consideração que pampa e pampeano tem uma relação intrínseca e fazem parte do mesmo, vai ser realizada a preservação deste bioma também. Porque é isso, a partir dos saberes populares, a partir dos saberes ancestrais, a partir de um cuidado e de um reconhecer do
território, tu vai saber qual a melhor forma de viver, trabalhando com autonomia, criando redes”

Na saída de campo, se viu a agrofloresta, o conceito de cultura permanente, as frutas nativas da região, os caminhos das águas, a importância das sementes crioulas, os estudantes tiveram contato com a bioconstrução (as casas da Marília e da Mônica são de barro). Houve compartilhamento de comida, puxado pelo GrupoBio, que levaram seus alimentos agroecológicos.

Segundo Marília, foi mais uma oportunidade de efetivar a troca de saberes entre pessoas mais velhas, que não fazem parte do ambiente escolar porque não tem parentes na escola. “Este conhecimento se perde no não conversar do avó com neto, dos pais com os filhos. Nesse contexto, a solução que o Estado dá é a privatização das escolas. Por outro lado, propondo levar a comunidade para dentro da escola e tirar a escola e colocar na comunidade, tu acaba colocando mais pessoas na discussão. Pessoas que vão garantir um melhor viver naquele espaço, no Pampa”.

Fonte: Amigos da Terra Brasil