Por: Cibele Kuss,
Sônia Gomes Mota e
Romi Márcia Bencke.
Estamos vivendo a boa-nova da ressurreição, que não finalizou no Domingo de Páscoa.
Jesus está entre nós e, com isso, a certeza de que projetos totalitários de morte e exclusão não terão a última palavra e nem o último gesto. A ressurreição de Jesus para nós, cristãs, é a esperança herética e teimosa que insiste na possibilidade de sonhar realidades totalmente transformadas.
Nestas últimas semanas, por causa da pandemia do Covid-19, acompanhamos o assustador aumento global do número de violência doméstica contra mulheres e meninas.
A vida das mulheres torna-se mais difícil e exigente nestes tempos de confinamento. Grande parte das mulheres que têm seus empregos precisam seguir trabalhando em casa para garantir a sua renda. No entanto, nem sempre as tarefas domésticas são divididas em condições de igualdade entre homens e mulheres. A carga maior, geralmente, é das mulheres.
O convívio cotidiano nem sempre é carinhoso, de parceria e compreensão. O acúmulo do estresse, as relações patriarcais e a impossibilidade de sair de casa por causa da quarentena faz com que um maior número de mulheres fiquem expostas à violência doméstica e de gênero. Os canais tradicionais de denúncia e ajuda têm sido difíceis de serem acessados, e há também um esgotamento das políticas de proteção. Esta situação mostra como ainda persistem as contradições do sistema patriarcal, capitalista e racista.
Quem ficará vigilante?
Lembramo-nos da história contada por uma amiga sobre a letra de uma canção¹ espanhola que diz o seguinte:
Em meio a uma plantação de girassol, havia um que optava por não baixar a cabeça durante a noite. Ele esperava pela chegada da lua. Com isso, quando a noite se tornava profunda, este girassol era o único que contemplava a lua e as estrelas. Esta contemplação dava ao girassol uma lucidez e sagacidade muito especiais. A lucidez e a sagacidade eram o resultado da sua fé, da curiosidade e da capacidade de discernimento. A flor contestadora passou a ser chamada de Giralua. Era uma flor girassol desobediente, contestadora e sonhadora.
A Giralua lembra algumas personagens que são centrais na história da Paixão e Páscoa. Lembra as mulheres que ousaram desobedecer aos rígidos padrões patriarcais daquele tempo para desvelar a história de injustiça, condenação, solidão, tortura e ausência e a morte violenta que estava por vir.
A primeira mulher foi a que ungiu Jesus em Betânia, Maria, irmã de Marta e Lázaro. Maria irrompe o espaço dos homens, abrindo-o para o cuidado e a denúncia de que o assassinato de Jesus estava por vir. Diante de um ser humano criminalizado e ameaçado, a unção era necessária. A lucidez desta mulher fez com que irrompesse na sala e derramasse sobre Jesus um frasco de um perfume muito caro. Nenhum dos homens que estavam conversando com Jesus compreendeu o gesto profético de Maria de Betânia. Criticaram o desperdício de um perfume caro. Não entenderam nada da vida real. Maria de Betânia seguiu a lógica da Giralua. Enquanto todos olhavam para uma única direção, ela olhou além, leu a realidade política e religiosa que condenaria Jesus. Ela contesta o poder que condena Jesus, reafirmando que o verdadeiro poder está na vulnerabilidade de Jesus, que será morto por conta do seu projeto de igualdade.
As outras mulheres são as que, logo após a crucificação de Jesus, se arriscaram e ficaram de prontidão. Graças à vigilância teimosa e corajosa destas mulheres que vieram com Jesus da Galileia (Lc 23.55), elas viram quando José de Arimateia foi procurar Pilatos para pedir o corpo de Jesus e sepultá-lo em uma tumba talhada na pedra. Eram elas: Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Zebedeu, Madalena e outras mulheres que acompanharam o sepultamento de Jesus. Por causa disso, poderiam retornar no terceiro dia com aromas e perfumes para ungir o corpo de Jesus. Estas mulheres são Giraluas. Enquanto todos se escondiam com medo da perseguição, elas permaneceram vigilantes. Era necessário saber os próximos passos do poder político e religioso que condenou Jesus à morte. Fugindo e se escondendo como a maioria fez, elas não saberiam o que teria acontecido com o corpo de Jesus. Desafiando todas as tradições religiosas e culturais da época, e demonstrando ousadia, elas permaneceram próximas ao sepulcro.
Por fim, chegamos a Maria Madalena.
Esta mulher, cuja história foi anulada, silenciada, difamada, foi a que anunciou a ressurreição de Jesus (Jo 20.1-18). Ela pôde fazer isso porque também foi Giralua. Já durante a atuação de Jesus na Galileia ela havia se mostrado uma liderança junto ao grupo que o seguia.
No domingo pela manhã, Maria Madalena foi ao túmulo onde ela e as outras mulheres haviam visto José de Arimateia colocando o corpo de Jesus. Maria Madalena ficou chorando do lado de fora do túmulo. Enquanto chorava, inclinou-se para o interior do sepulcro e não viu Jesus. Ela vê um homem próximo e pergunta a ele para onde haviam levado seu corpo. Quando este homem pronuncia o nome dela: “Maria”, ela o reconhece como sendo Jesus ressuscitado. Em seguida, Maria foi anunciar às amigas e aos amigos que Jesus havia ressuscitado. Maria Madalena foi Giralua porque não aceitou a condenação injusta e humilhante de Jesus como ponto final da história.
Maria Madalena rompe com a “naturalização da violência”. Ela se arrisca e é a primeira testemunha do evento fundante da igreja cristã. Ela derruba as bases do fundamento patriarcal que não permite que uma mulher seja testemunha, nem protagonista no mundo religioso e político. A desobediência de Maria Madalena mostra que novas formas de relações humanas são possíveis e imprescindíveis.
A ressurreição é um “não!” e um “basta!” para todas as cruzes e sofrimentos provocados por poderes totalitários. O sangue derramado, a humilhação, a morte de cruz, não são o fim da história e nem a vitória dos oligarcas. A ressurreição sinaliza que existe outro prosseguir.
A experiência da ressurreição vivida por Maria Madalena, através da sua desobediência ativa, faz com que vislumbremos a possibilidade de relações e comunidades ressuscitadas, agora, sob outros parâmetros.
Maria Madalena é a Giralua que organiza comunidades de iguais e experiências em que a horizontalidade, as bem-aventuranças, que hoje poderíamos chamar de direitos humanos, são indissociáveis da experiência da fé em Jesus Cristo.
Em contexto pascal e de preparação para o Pentecostes, quando cantamos e celebramos a ressurreição e a Divina Ruah, a experiência de Maria Madalena é inspiração profeticamente vibrante: ser desobediente, ficar vigilante e desnaturalizar a violência, apostando em outras formas de relacionamento.
O túmulo vazio anuncia que, se a cruz e a violência continuarem sendo domesticadas, não haverá ressurreição que se concretize no bem-viver; nem haverá a possibilidade de restabelecer justiça e paz para toda a criação.
Ressurreição é seguir os caminhos proféticos das mulheres discípulas que denunciaram a cruz como escândalo e indignação. É contestar e desobedecer para que o patriarcado que viola mulheres e meninas seja transformado e superado.
A ressurreição nos provoca a ser Giraluas!
Cibele Kuss, pastora, é secretária executiva da Fundação Luterana de Diaconia
Sônia Gomes Mota, pastora, é diretora executiva da Coordenadoria Ecumênica de Serviço
Romi Márcia Bencke, pastora, é secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
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¹Luis Eduardo Aute – Giraluna, 2002