Os municípios de Colatina e Linhares, no norte do Espírito Santo, receberam, pela primeira vez, a iniciativa Nem Tão Doce Lar. As atividades aconteceram entre os dias 24 a 27 de junho, em Colatina, e de 08 a 10 de julho, em Linhares. A jornada busca sensibilizar a sociedade sobre o tema da superação da violência doméstica e familiar e é realizada pela Fundação Luterana de Diaconia (FLD) com parcerias locais.
No Brasil, apenas no ano passado, segundo dados do Ministério das Mulheres, publicados no Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam) 2025, foram registrados 1.450 feminicídios e 2.485 homicídios dolosos e lesões corporais seguidas de morte, com a grande maioria sendo praticada por alguém muito próximo à vítima. O relatório mostrou também que o Brasil registrou o equivalente a 196 estupros por dia em 2024, totalizando 71.892 casos notificados.
Assim, a Nem Tão Doce Lar é uma mostra itinerante e interativa que possibilita a popularização da discussão sobre enfrentamento à violência, ao levar para espaços públicos a representação de uma casa familiar com pistas que denunciam a violência sofrida por mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência e comunidade LGBTQIAPN+.
Ela utiliza uma metodologia de intervenção coletiva, que promove a reflexão e popularização da discussão sobre o tema da violência doméstica, tantas vezes invisibilidade e naturalizado. Também fomenta o debate e a elaboração de estratégias de enfrentamento e de superação da violência a partir da criação e fortalecimento das redes de apoio nos municípios, pois envolve, de maneira prática e engajadora, organizações da sociedade civil, governamentais, instituições diaconais, universidades, escolas e comunidades religiosas.

Atividades em Colatina
No dia 24, primeiro dia de atividades, a Nem Tão Doce Lar promoveu uma oficina de formação para acolhedoras e acolhedores, com a participação de profissionais de diversas áreas e representantes de entidades parceiras da atividade, que atuam nos segmentos das redes de apoio. Participaram deste momento representantes da Secretaria Municipal de Educação, dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais dos municípios de Colatina, São Domingos do Norte, Governador Lindeberg e Marilândia, do Conselho Tutelar, da Delegacia da Mulher, do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) – Campus de Itapina, do Procon, da Diocese de Colatina, do Núcleo Margaridas, do Sindicato dos Servidores Públicos do município, da Comunidade Evangélica de Confissão Luterana em Colatina, do Centro de Referência Assistência Social (CRAS) e do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) do Município de Pancas.
A oficina permitiu a troca de conhecimentos e de experiências sobre o tema da violência doméstica e familiar e sobre a metodologia da Nem Tão Doce Lar. Além disso, também privilegiou que as pessoas participantes pudessem contar as suas próprias experiências de vida e discutir os diversos aspectos que envolvem essa temática.
De acordo com Neygila Santos, professora no curso de licenciatura em Pedagogia do Ifes, integrante do Grupo de Mulheres Negras Zacimba Gaba, do Núcleo de Estudo e Pesquisa de Gênero e Sexualidade (NEPGENS) e do Conselho Municipal de Igualdade Racial na cidade de Colatina, “as oficinas foram uma oportunidade de aprendizado valioso, pois permitiram que eu compreendesse melhor o projeto e como abordar essa temática em diferentes redes de apoio no município. Além disso, foi possível conhecer pessoas de várias instituições de Colatina e Pancas, e entender seus trabalhos relacionados ao combate à violência doméstica e familiar”, conta.
Já nos dias 25 e 26, a casa-exposição foi montada, no Sindicato dos Servidores Públicos Municipais, e esteve aberta à visitação pública. Durante a visita, foi possível circular por diferentes cômodos da casa-exposição, identificar as pistas deixadas nos cenários e expor as impressões em uma roda de conversa conduzida pelas acolhedoras e acolhedores que participaram da formação. Espalhadas pelo espaço, tarjetas com informações a respeito dos vários tipos de violência que podem acontecer no ambiente e convívio doméstico e familiar, sensibilizam, propõem métodos preventivos e incentivam a denúncia.
De acordo com Audréya Mota França Bravo, advogada militante pelos direitos das mulheres e membra da Comissão Justiça e Paz da Diocese de Colatina, o debate sobre o tema da violência é essencial. “Superar a violência doméstica e familiar não é uma coisa fácil, por isso precisamos aproveitar todas as capacitações e espaços de fala como tivemos na Exposição Nem Tão Doce Lar, para sermos multiplicadoras e multiplicadores e estar com àquelas pessoas que mais precisam, afinal todas tem direito a um lar de paz”, acrescenta.
No dia 27 de julho, a programação foi destinada especialmente às mulheres de comunidades religiosas. A roda de diálogo e reflexão foi conduzida Renate Gierus, assessora de projetos em justiça de gênero na FLD. De acordo com Acleciana Zemke Bailke, presidenta da Paróquia Luterana de Colatina, “mais mulheres precisam ter este contato e essa reflexão (…) porque ficamos presas em nosso mundinho e não paramos para refletir (…), por isso essas atividades são fundamentais”.
A realização da Exposição Nem Tão Doce Lar revelou a necessidade de mais espaços seguros para que as mulheres possam falar sobre assuntos que atravessam o seu cotidiano, entre eles as violências simbólicas e de gênero, tanto em âmbito doméstico quanto nos espaços externos. O desafio de criar espaços seguros para que as pessoas em situação de vulnerabilidade possam refletir sobre as violências sofridas é um compromisso a ser assumido a partir do fortalecimento das redes de proteção e apoio.

Atividades em Linhares
No município de Linhares, a oficina de formação de acolhedoras e acolhedores aconteceu no dia 8 de julho, no auditório do CRAS Interlagos, e contou com participação de representantes do Conselho Municipal de Direitos das Mulheres, Centro Margaridas, CREAS, Patrulha Maria da Penha, Centro de Acolhimento e Atenção Integral sobre Drogas, Comunidade Luterana entre outras.
Já a casa-exposição foi montada na sede do Centro Margaridas e ficou aberta ao público geral nos dias 9 e 10 de julho. O público visitante, em sua maioria pessoas dos equipamentos públicos e público beneficiário, tiveram a oportunidade de circular pelos espaços, observar as pistas e compartilhar suas impressões e descobertas em uma roda de diálogo, conduzida pela assessoria de projetos da FLD e pela equipe do Centro Margaridas. Muitas histórias e partilhas apresentavam casos recentes ocorridos no município e que ganharam projeção na mídia local.
Tanto as equipes técnicas quanto os grupos que visitaram a casa reafirmaram a necessidade de trabalhos contínuos e com foco na prevenção das diversas violências observadas dentro do cenário da casa. Garrafas de bebidas alcoólicas, caixas de remédios, bandeja com café da manhã e pedido de desculpas, objetos quebrados e as tarjetas com informações provocaram reflexões sobre como as pistas concentradas em um mesmo espaço podem, ao mesmo tempo, alertar e também ser gatilho para quem viveu ou está vivenciando tais situações de violação. A roda de conversa possibilitou interações e propostas de atuação ecumênica entre as duas comunidades, voltadas para a formação contínua e fortalecimento das ações diaconais de ambas.
De acordo com Francisco Rafael Santos, Pastor da Comunidade Luterana de Linhares, Paróquia da Missão, a violência contra a mulher é um problema sério, com altos índices de denúncias e ocorrências policiais e, segundo ele, “a Nem Tão Doce Lar engajou os participantes, promovendo a conscientização de que a superação da violência doméstica é uma construção coletiva”.
Lucas de Jesus Santos, psicólogo do Centro de Acolhimento e Atenção Integral Sobre Drogas (CAAD) de Linhares, destacou que a iniciativa é profundamente significativa, pois busca apresentar uma temática ainda cercada de silêncios e tabus: a violência doméstica. “Abordar esse assunto, em toda a sua complexidade, não é apenas urgente, mas absolutamente necessário. A violência doméstica não se limita à agressão física, ela assume diversas formas, como a psicológica, emocional, patrimonial, sexual e até mesmo simbólica, corroendo silenciosamente a dignidade e a saúde mental de inúmeras pessoas, especialmente mulheres e crianças”, destacou.

As atividades nos dois municípios contaram com o apoio das comunidades luteranas nos territórios e com a participação do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Colatina, Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Núcleo Margaridas e Diocese Católica. Em Linhares, o Centro Margaridas e CRAS Interlagos foram as principais organizações parceiras. Tanto Colatina quanto Linhares se constituem como cidades polos na região norte do Espírito Santo, extremo sul da Bahia e leste de Minas Gerais. Com um grande fluxo de pessoas de outras cidades da região, a realização das jornadas da Nem Tão Doce Lar contribuíram para o debate sobre as questões pertinentes aos efeitos das violências para públicos amplos de toda a região.